Marco Civil da Internet: cinco anos de evolução nos direitos digitais
Artigo publicado 25 de abril de 2019 no site da Carta Capital
Acesso à internet como um direito universal e essencial; sistemas jurídicos para assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura; proteção de dados pessoais e privacidade reconhecidos como direitos do internauta; dever dos provedores de acesso à internet de tratarem de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo ou aplicação e independente de questões econômicas, políticas ou religiosas – a neutralidade da rede. Estas são algumas conquistas do Marco Civil da Internet (MCI) – Lei 12.965, de 24 de abril de 2014, que completou cinco anos.
Apesar das centenas de iniciativas legislativas que se propõem a alterar o MCI, muitas delas no sentido de desvirtuar seu caráter de carta de princípios, o certo é que a lei vem resistindo bravamente a diversos ataques e segue intacta ao completar esses 5 anos. E essa resistência se deve às bases sólidas que estruturaram o processo de construção desta lei.
A primeira pedra fundamental que serviu de base para esta carta de direitos, e que não deve ser esquecida, foi a criação do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.Br), ainda em 1995, reestruturado posteriormente pelo Decreto 4.829/2003, quando ganhou mais institucionalidade seu caráter de organismo multissetorial, com 21 membros, sendo que 9 do governo e os demais eleitos pela sociedade civil.
Foi deste organismo democrático que nasceu o consenso valioso entre os representantes do governo e da sociedade civil, expresso no Decálogo de Princípios para o Uso e a Governança da Internet, editado em 2009, definindo diretrizes que foram engendradas pelo espírito do MCI, determinando que “o uso da internet deve guiar-se pelos princípios de liberdade de expressão, de privacidade do indivíduo e de respeito aos direitos humanos, reconhecendo-os como fundamentais para a preservação de uma sociedade justa e democrática”. Ao longo de todo o processo de construção da lei, que se iniciou com uma consulta pública aberta em 2009 no Ministério da Justiça, com ampla participação social, a proposta ganhou robustez justamente em virtude dos amplos e democráticos debates que a forjaram e que tiveram como respaldo os 10 princípios para a governança da internet editados pelo CGI.br.
Aliás, é importante frisar que uma das mais importantes conquistas do MCI foi a garantia de que a governança da internet se dará por mecanismos multissetoriais, com representação de governos, empresas, academia e terceiro setor, de modo a viabilizar que as diretrizes estratégicas para o desenvolvimento e uso da internet no Brasil sejam definidas em ambiente democrático.
Encerrado o processo de consulta pública no MJ, o projeto foi encaminhado pela presidenta Dilma Rousseff ao Congresso Nacional, em 2011. Na Câmara, foi conduzido pelo deputado Alessandro Molon, cujo comprometimento com o caráter público da internet foi determinante para que a lei passasse de forma íntegra e com a preservação de seus pilares básicos, aprovada por unanimidade inacreditável e muito comemorada.
É claro que o processo no Congresso Nacional transcorreu com muitos embates entre interesses públicos, envolvendo direitos fundamentais, e interesses corporativos, que atuaram com o objetivo de extirpar os dispositivos que deixariam, como de fato deixaram, inequívoco o caráter de espaço público que tem a internet, conforme já havia sido reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU).
Estas disputas se deram especialmente em torno da neutralidade da rede e da garantia de liberdade de expressão, privacidade e respeito aos direitos humanos. Também foram enfrentadas forças de alguns setores do governo e de investigação, que pretendiam conferir um caráter penal para a lei sob o falso paradoxo entre segurança e privacidade. Porém, no todo, foram preservados os aspectos principais que conferem parâmetros importantes de civilidade para o uso e desenvolvimento da internet, o que explica ser o MCI uma referência internacional.
De qualquer forma, pouco mais de um ano da edição da lei, foi instaurada a Comissão Parlamentar de Inquérito do Cibercrime, sob a justificativa emocional da ocorrência de pedofilia, de crimes de corrupção e de lavagem de dinheiro nas redes. Na verdade, a iniciativa tinha por trás o lobby das corporações que não se sentiram contempladas com os termos da lei e tinham a intenção de relativizar as garantias da neutralidade da rede. Além, é claro, de atender à demanda da indústria do copyright no sentido de resgatar a possibilidade de remoção de conteúdos por mera notificação, pondo em risco o direito de acesso universal à internet e a liberdade de expressão.
Naquela ocasião agiram junto aos parlamentares ativistas e organizações da sociedade civil e terminou por preponderar o bom senso. Houve o reconhecimento do fato incontestável de que a navegação nas plataformas de internet, por suscitarem grandes interesses comerciais – pois são a fonte ideal para a coleta de dados pessoais – e por suscitarem também interesses políticos, podendo produzir silenciamentos e impactar a liberdade de expressão, demandavam proteções como as estabelecidas no MCI e no decreto que o regulamentou (Decreto 8.771/2016).
Caso fosse permitida a quebra de garantias estabelecidas na legislação, como o uso legítimo da criptografia na troca de mensagens, correríamos o risco de viabilizar a vigilância arbitrária e massiva e de se iniciar um processo de destruição do espírito da lei. Os mais recentes ataques ao MCI vieram escondidos atrás dos processos de desinformação – chamados de fake news – com as inúmeras tentativas de quebrar o princípio da não responsabilização de intermediários por conteúdos postados por terceiros. Novamente pondo em risco princípios fundamentais para a garantia da liberdade de expressão e proibição da censura.
As disputas em torno das conquistas que vieram com o MCI não vão arrefecer; a forte e intensa dinâmica do mercado de serviços prestados na internet vai intensificar os conflitos entre interesses comerciais e garantia de direitos fundamentais, como é fácil concluir quando constatamos o crescimento da Internet das Coisas (IOT).
Hoje uma parte significativa de nossas vidas e da formação da nossa subjetividade – incluindo aí a de crianças e adolescentes – são forjadas e conduzidas em função de algoritmos e sistemas de inteligência artificial utilizados pelas empresas transnacionais que operam na internet. Aliás, dispositivos que mantém um alto potencial discriminatório (de temas, culturas, opiniões políticas, raça, gênero, etc.).
A atualidade e pertinência de continuarmos lutando pela manutenção dos princípios estabelecidos com o MCI se reforça neste cenário. Isto sem falar da necessidade de introduzirmos, nos espaços regulatórios, temas que vêm sendo amplamente tratados nos fóruns de governança internacionais como multidisciplinariedade e ética na internet.
E, nesse cenário, o que precisamos é continuar atuando para conferir plena eficácia aos princípios e direitos que conquistamos, o que implica num processo árduo e longo no qual sociedade civil deve estar organizada e articulada com os formuladores de políticas públicas, que precisam se apropriar desses ganhos e conferir consequências práticas a esses direitos.
O alcance da lei e seus efeitos vão-se conformando aos poucos, de acordo com a regulamentação e com o posicionamento jurisprudencial que, por sua vez, também vai se alterando conforme as dinâmicas das realidades econômicas e sociais. Ou seja, o MCI, assim como todas as leis, é um organismo vivo cuja interpretação vai se adaptando às resultantes dos confrontos de forças de representação dos diversos segmentos da sociedade, tanto no campo regulatório quanto no campo judicial.
Os resultados nesses poucos cinco anos são positivos. Mas é preciso seguir trabalhando para conferir musculatura a estrutura regulatória e fiscalizatória estabelecida com o Decreto 8.771/2016, bem como para dar consequência às diretrizes, recomendações e especificações técnicas para a aplicação da lei sobre internet no Brasil definidas pelo CGI.br.
Se pretendemos preservar as garantias do MCI e regular seus direitos de modo a atender a dinâmica dos mercados sem comprometer o interesse público e os direitos fundamentais, será necessário dar consequência à determinação estabelecida pela lei, no sentido de que os poderes públicos devem atuar na governança da internet orientando-se por mecanismos multissetoriais que promovam a participação e controle social.
Garantir a existência do CGI.BR e tornar sua atuação com a Secretaria de Defesa do Consumidor, Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) mais intensa e coordenada são, portanto, os desafios do período. Assim como são desafios ainda acelerar a inclusão digital e promover o desenvolvimento democrático e justo do acesso à internet com respeito à privacidade e à proteção dos dados pessoais.