Os destinos do Marco Civil da Internet e a participação social

O Marco Civil da Internet (MCI) – a Lei 12.965/2014 – veio introduzir garantias fundamentais ampliando o piso regulatório do serviço de conexão a Internet, como um reconhecimento de sua importância para o desenvolvimento econômico, social e cultural do país.

Classificado como serviço de valor adicionado, como reiteradamente tem confirmado o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, até a edição do MCI, o acesso a Internet era regulado apenas pela Norma 04/95 editada pela Portaria Conjunta nº 148 dos Ministérios da Comunicação e Ciência, Tecnologia e Inovações.

Também o art. 61, da Lei Geral de Telecomunicações de 1997, já tratava da sua distinção com os serviços de telecomunicações e classificou os provedores de conexão à Internet como usuários das redes de telecomunicações.

Além disso, na relação contratual que se estabelece entre provedores e consumidores, o Código de Defesa do Consumidor já vinha sendo aplicado.

Mas o MCI veio ampliar largamente o piso regulatório do serviço de conexão a Internet; é uma lei que, de forma expressa, estabeleceu a garantia do direito à privacidade e à liberdade de expressão nas comunicações como condição para o pleno exercício do direito de acesso à internet.

Além disso, o MCI trouxe para o âmbito regulatório o caráter universal (art. 4º) e essencial para o exercício da cidadania (art. 7º), o que implica no surgimento de outros direitos conexos, como é o caso da garantia de continuidade da prestação do serviço (inc. IV, do art. 7º), o direito ao consentimento expresso e informado para coleta e o uso dos dados pessoais dos internautas (inc. IX, do art. 7º) e a proteção da privacidade e das comunicações (art. 8º), assim como deveres para os agentes públicos formuladores de políticas públicas (art. 1º e 24 e seguintes) das três esferas da federação, no sentido de promover a inclusão digital e o acesso não discriminatório.

E aí perguntamos: essas garantias estão todas vigendo com plena eficácia? Claro que ainda não. A sociedade civil e os formuladores de políticas públicas precisam se apropriar desses ganhos e conferir consequências práticas a esses direitos. Estamos ainda em fase de disputa com relação à abrangência, interpretação e implicações decorrentes desses vários direitos.

Fazendo um balanço sobre a aplicação do MCI desde sua edição em abril de 2014 é importante lembrar que os temas mais sensíveis, como a neutralidade da rede e a proteção aos registros, aos dados pessoais e às comunicações privadas, ficaram para ser regulamentados, conforme os arts. 9º, 10, 11, 13 e 15 da lei.

E esse regulamento só foi editado em junho de 2016. É o Decreto 8.771/2016, editado depois de um amplo processo de consulta pública, bem como das contribuições, também previstas na lei, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL).

Processos para aplicação e interpretação da lei O alcance da lei e seus efeitos vai-se conformando aos poucos, de acordo com a regulamentação e com o posicionamento jurisprudencial que, por sua vez, também vai se alterando conforme a as dinâmicas das realidades econômicas e sociais.

Ou seja, as leis e, portanto, o MCI, são organismos vivos cuja interpretação vai se adaptando às resultantes dos confrontos de forças de representação dos diversos segmentos da sociedade tanto no campo regulatório quanto no campo judicial.

Exemplo muito claro e concreto foi o processo de compreensão e aplicação do Código de Defesa do Consumidor, que para sua aprovação e, posteriormente, no início de sua vigência, sofreu muita resistência, inclusive no Poder Judiciário, e hoje está em pleno vigor com a eficácia de mecanismos que à época de sua edição causaram muita controvérsia e confronto, como é o caso da responsabilidade objetiva e solidária na cadeia de fornecimento de serviços, ou a possibilidade de os juízes anularem e/ou alterarem disposições contratuais, inversão do ônus da prova, entre outras.

Enfim, no que diz respeito ao MCI, estamos na fase das disputas sobre premissas e preceitos básicos e fundamentais da lei, o que demanda organização do terceiro setor especialmente, diante do poder econômico e de lobby dos grandes grupos econômicos transnacionais que atuam em escala monopolista, seja na camada de infraestrutura de telecomunicações seja nas camadas de protocolos de Internet e aplicações.

Nesse cenário, temos de dar importância especial ao Decreto 8.771/2016, que regulamenta o MCI e estabeleceu um sistema de fiscalização e controle dos direitos instituídos com a lei, envolvendo ANATEL, Secretaria de Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça e Conselho de Administração da Defesa Econômica, todos agindo de forma colaborativa, de acordo com diretrizes definidas pelo CGI.br.

Sendo assim, é imprescindível passarmos a trabalhar de modo a conferir musculatura a esta estrutura regulatória e fiscalizatória, bem como para dar consequência às diretrizes, recomendações e especificações técnicas para a aplicação da lei sobre Internet no Brasil, definidas pelo CGI.br, publicadas no último dia 31 de janeiro de 2018.

O documento apresentado pelo CGI traz de maneira concisa diretrizes técnicas e recomendações para a aplicação da lei sobre Internet no Brasil. O conteúdo deste documento é fruto dos trabalhos do grupo de trabalho Marco Civil e Responsabilidades do CGI.br, com participação multissetorial, e foi aprovado pelo pleno do Comitê em reunião ordinária realizada no dia 19 de janeiro de 2018.

Ou seja, trata-se de um documento de consenso entre os setores do governo, academia, empresas e 3º Setor, voltado para orientar a aplicação da lei em todos os campos.

Outro ambiente para conformação do alcance do MCI é o Poder Judiciário. Atualmente temos algumas ações tramitando no STF, cujos julgamentos serão determinantes para aspectos sensíveis da lei: a) Bloqueios de aplicação WhatsApp - Arguição de Preceito Fundamental 403 ajuizada pelo PPS. Estão em jogo nesta ADPF:

  • Interpretação dos arts. 11 e 12, do MCI; Jurisdição;
  • Uso de mecanismos de proteção da intimidade, privacidade e dos dados pessoais – uso de criptografia – inc. IV, do art. 13 do Decreto 8.771/2016

b) Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 51 ajuizada pela Federação das Associações das Empresas de Tecnologia da Informação (Assespro Nacional), que busca validar dispositivos de cooperação internacional referentes à obtenção de conteúdo de comunicação privada sob controle de provedores de aplicativos de internet sediados no exterior.

Os dispositivos em questão fazem parte do Decreto Federal 3.810/2001, que promulgou o Acordo de Assistência Judiciário-Penal entre os governos brasileiro e norte-americano, além de outros dispositivos legais que tratam das relações jurisdicionais do Brasil com autoridades estrangeiras.

Esta ação interessa especialmente o Facebook, que resiste em apresentar o conteúdo de comunicações, mesmo quando determinado por ordem judicial. Ou seja, mais uma ação que trata de questões de jurisdição.

c) Repercussão Geral reconhecida pelo STF no RExt 1037396, interposto pelo Facebook Serviços Online do Brasil Ltda. contra decisão da Segunda Turma Recursal Cível do Colégio Recursal de Piracicaba (SP) que determinou a exclusão de um perfil falso da rede social e o fornecimento do IP de onde foi gerado. O recurso discute a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) que exige prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil de provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros.

Ao se manifestar pela existência de repercussão geral, o relator do RE, ministro Dias Toffoli, assinalou que o tema em discussão é definir se, à luz dos princípios constitucionais e do Marco Civil, a empresa provedora de aplicações de internet tem os deveres de fiscalizar o conteúdo publicado nos seus domínios eletrônicos, de retirar do ar informações reputadas como ofensivas mediante simples notificação extrajudicial e de se responsabilizar legalmente pela veiculação do conteúdo antes da análise pelo Poder Judiciário. “A transcendência e a relevância são inequívocas, uma vez que a matéria em questão, dadas a importância e o alcance das redes sociais e dos provedores de aplicações de internet nos dias atuais, constitui interesse de toda a sociedade brasileira”, afirmou.

Investidas no Poder Legislativo contra o MCI Fundamental levar em conta, neste processo de incorporação dos direitos advindos com o MCI pela sociedade, o fato de que agentes governamentais e econômicos insatisfeitos, com aspectos a lei, incessantemente têm atuado no Congresso Nacional.

São mais de 300 projetos de lei – isso mesmo, mais de 300 projetos de lei tramitando e que, em alguma medida, pretendem alterar o MCI.

A Comissão Parlamentar de Inquérito do Cibercrime é um bom exemplo para mostrar como a Motion Picture Association aproveitou o apelo de crimes de pedofilia, fraudes bancárias entre outros para tentar alterar o art. 19, do MCI, a fim de viabilizar a retirada de conteúdos sem prévia ordem judicial, inclusive para proteger direitos autorais, a despeito da previsão do art. 30 da lei, que já faz referência à Lei de Direitos Autorais para tratar desses problemas.

E agora, as mais recentes investidas contra o MCI vêm na onda de atacar as chamadas fake news. O que se pretende é criminalizar a divulgação de informações ditas não confiáveis e alterar o art. 19, do MCI, para afastar a obrigatoriedade de ordem judicial para retirada de conteúdos e responsabilizar os provedores que não atendam meras notificações. No fundo, os políticos que apresentam estas propostas têm medo da opinião pública e, reagindo, atacam a nossa democracia.

Multisetorialismo, participação e controle social Todas essas disputas têm posto em destaque a importância de mecanismos de participação e controle social.

E o MCI, no art. 24, deixou claro que a governança da Internet deve se dar por mecanismos multissetoriais, com a participação do CGI.br.

A governança multissetorial tem sido determinante no cenário de disputas como o caso da edição do decreto que veio regulamentar o MCI, quando a participação do CGI.br significou influência extremamente relevante e positiva no processo de construção do Decreto 8.771/2016.

Outros mecanismos, como a figura do amicus curiae (art. 138 e seguintes do CPC 2015), ampliam espaços democráticos para viabilizar a participação social e sustentar a atuação do Poder Judiciário, como pudemos assistir na audiência pública instalada pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 403, que trata de bloqueios de aplicativos e jurisdição, que contou com a ampla participação de diversos setores interessados como Ministério Público, Polícia, Governo, Academia, Empresas e entidades do 3º Setor.

Enfim, temos muito trabalho pela frente para construir sobre o fundamentos e ganhos que o MCI trouxe para o país, a fim de que possamos acelerar a inclusão digital e promover o desenvolvimento democrático e justo do acesso a Internet.