28 de setembro de 2024
Contradições a potência máxima
Para um governo que tem se pronunciado tanto nos fóruns internacionais em defesa da soberania digital e da integridade da informação, a nota divulgada pela Advocacia Geral da União no último dia 27 de setembro sobre os termos do acordo a ser assinado entre a OI e a União é um acinte. Trata-se do encerramento da concessão iniciada em 1998, no bojo da privatização do Sistema Telebrás, que, ironicamente à época, o Partido dos Trabalhadores (PT) batizou de privataria.
A posição do PT fundava-se em críticas publicadas inclusive pela Fundação Perseu Abramo, que ainda em 2020 mantinha as críticas ao processo de privatização da Telebrás, como se pode constatar de artigo publicado onde se lê:
Há 22 anos, em 29 de julho de 1998, a soberania brasileira sofria um de seus maiores golpes. Em 12 leilões consecutivos na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro, o governo Fernando Henrique Cardoso realizou a maior privatização do setor de telecomunicações ocorrida no mundo até então. O processo ocorreu em meio a muitas manifestações de protesto e contestações judiciais. O Partido dos Trabalhadores travou uma verdadeira guerra contra a venda das estatais, que hoje está documentada no acervo do Centro Sérgio Buarque de Holanda. “A privatização do Grupo Telebrás é uma questão de soberania nacional”, dizia a carta do então presidente da legenda, José Dirceu, no PT Notícia 64º.
Apesar da “guerra travada contra a venda das estatais”, hoje, 26 anos depois, o Governo Lula faz muito pior. Está entregando um patrimônio com valor estimado pela ANATEL em 2019 de R$ 101 bilhões: são dutos subterrâneos implantados em 95% do território nacional, redes de cobre e de fibra ótica, de transporte e de acesso, torres, uma carteira de milhões de clientes e, pelo menos, 7.900 imóveis, como informado pela OI por meio de Fato Relevante à CVM no último mês de agosto.
Curiosamente, o Presidente Lula ainda em agosto deste ano, criticou as privatizações e disse que Telebras vai estar a serviço da soberania nacional. Porém, o movimento que seu governo faz agora contradiz sua preocupação.
Robin Hood ao contrário
Pela Lei Geral das Telecomunicações, os R$ 101 bilhões deveriam ser revertidos em compromissos de investimento pela OI, que “priorizarão a implantação de infraestrutura de rede de alta capacidade de comunicação de dados em áreas sem competição adequada e a redução das desigualdades” (art. 144-B). Porém, o acordo que está para acontecer atropela esta previsão legal.
Mas o pior é que a AGU chancelou que o acordo seja fechado com base em avaliação com graves ilegalidades apontadas pelo Tribunal de Contas da União no acórdão 516/2023, como já informei em post anterior, cometidas pela ANATEL, como atribuir valor zero a 49,18% do total dos bens vinculados à concessão da OI, além de sub-avaliar os 7.900 imóveis de grande valor, recebidos pela empresa na época da privatização, em cifras para lá de irrisórias; e não estou exagerando nada. Vejam a lista disponibilizada pela ANATEL em 2019:
Agora pasmem; a OI informou a CVM que a Ernest & Young avaliou esses mesmos imóveis e chegou ao valor mínimo de R$ 5 bilhões. Mas friso que, para além dos 7.900 imóveis que ela admite estar na posse, a OI tungou 5.100 imóveis, pois na época da privatização ela recebeu 13.000, sem que os recursos arrecadados com a alienação dos bens tenha revertido para a concessão.
Ou seja, justamente o Governo Lula está atuando como Robin Hood ao contrário: tirando volumosos recursos públicos de investimentos que deveriam estar direcionados para a universalização da banda larga, de modo a reverter o quadro vergonhoso de desigualdade no acesso a Internet que temos no Brasil, penalizando especialmente as classes C,D e E, para doar generosamente a banqueiros neoliberais, que não perdem a oportunidade de, defendendo juros altos e rentismo, sugar recursos que poderiam ser investidos em distribuição de renda e justiça social.
Sim! Isto porque quem já está se apropriando dos bens desde o ano passado, mesmo antes do acordo ser fechado, é uma empresa chamada V.Tal, onde a OI tem participação acionária de 17% e que tem controle acionário de 87% pelo BTG Pactual. A V.tal, com muita alegria, tem anuciado alta de 178% nos lucros anabolizados pelo que a ANATEL chama de sucata da OI - redes de cobre e fibra ótica.
Desinformação e malversação de recursos públicos
Mais feio ainda é a Nota divulgada pela Advocacia Geral da União, informando que aprovou o acordo lesa-pátria, porque ele seria positivo para os cofres públicos. A nota publicada pelo Telesíntese afirma o que está transcrito abaixo; tem tantas inverdades na nota que poderia afirmar que ela veio do governo do Bozo.
Vamos às inverdades, para além da tunga de R$ 100 bilhões que as políticas públicas de acesso a Internet estão amargando. A nota diz:
“Entre os compromissos assumidos pela empresa está o de investir R$ 5,8 bilhões em serviços de conexão à internet. Isso vai garantir o acesso de mais de 4 mil escolas públicas, de forma gratuita, à rede mundial de computadores e a instalação de cabos submarinos interligando o Norte ao Sul do país. Além disso, está prevista a construção de cinco novos centros de processamento de dados (data centers”). Mas a realidade de consta do acordo é esta aqui:
Vejam que para escolas públicas estão previstos R$ 1,19 bilhões, sendo que já existem duas outras políticas públicas que determinam investimento na conexão das escolas – FUST e contrapartida da frequência de 26 MHz do 5G, o que significa que estamos pagando 3 vezes pela mesma meta – ESCÂNDALO.
Para a implantação de data centers o Brasil acabou de aprovar o Plano Brasileiro de Inteligência Artificial prevendo bilhões para a mesma finalidade.
E, pior ainda, o acordo não prevê nem um centavo para redes de alta capacidade para universalizar o acesso a Internet – VERGONHA, como está estabelecido pelo § 3º, do art. 144-B, da LGT!
Assalto
A AGU diz que o acordo é bom para a União porque vai fechar um plano de pagamento de multas e tributos devidos pela OI, que totalizam menos de R$ 1 bilhão. Entretanto, esse valor será pago em 9,5 anos.
Enquanto que, para fechar o acordo, o Brasil vai entregar R$ 101 bilhões para a V.tal/BTG Pactual, mas não exigirá que a OI desista do procedimento arbitral por meio do qual cobra da União nada mais nada menos do que R$ 60 bilhões e que, a boca pequena, já se escuta que a ANATEL vai aceitar pelo menos a dívida de R$ 12 bilhões.
A conclusão é a seguinte, vamos pagar muito para os banqueiros levarem nosso patrimônio e criarmos dependência tecnológica de empresas privadas sem nenhum compromisso com o interesse público, pois até já estão desconectando milhares de usuários da OI, conforme painel do site Teleco com informações da própria ANATEL.
O mais absurdo é que tanto o MPTCU quanto a AudComunicações - órgão de auditoria da Corte de Contas desaconselharam fortemente o acordo, apontando todas as inconsistências que estou indicando aqui. Passo então à transcrição de trecho do Parecer da Procuradora-Geral Cristina Machado da Costa e Silva:
- Dadas as considerações expostas ao longo deste parecer, temos por devido não recomendar a assinatura do termo de autocomposição proposto, em razão das condições desvantajosas ao interesse público presentes em suas disposições, visto que, além das impropriedades relacionadas acima (parágrafo 81): i) o acordo foi construído de forma dependente a uma sentença favorável à Oi em processo de arbitragem, uma resolução de conflitos que comporta inegável incerteza quanto ao seu desfecho, pois os principais pleitos requeridos pela Oi envolvem riscos do negócio e a considerável possibilidade de incidência da prescrição; ii) com a sua assinatura, serão encerradas discussões de temas relevantes aos instrumentos de concessões, como bens reversíveis e valor econômico das adaptações, não apenas no âmbito da Anatel, como também na Justiça (futuros) e no Tribunal, os quais, ainda que se restrinjam ao objeto acordado, podem gerar possíveis impactos indiretos e indesejáveis não apenas para a área de telecomunicações, mas para os demais setores de infraestrutura, pelos precedentes abertos; III) É ADOTADO, COMO SALDO ASSOCIADO À MIGRAÇÃO DO REGIME DE OUTORGA PARA AUTORIZAÇÃO, O VALOR DE R$ 5,8 BILHÕES, QUE FOI DEFINIDO DE FORMA PRAGMÁTICA, SEM AMPARO DE METODOLOGIA DE CÁLCULO DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA, E QUE REPRESENTA UMA REDUÇÃO DE QUASE 75% DO QUE FOI AVALIADO PELA ANATEL EM TERMOS DE VALOR ECONÔMICO DA ADAPTAÇÃO (R$ 20 BILHÕES, QUE PODE CHEGAR A R$ 23 BILHÕES A PARTIR DAS APURAÇÕES EM ANDAMENTO NO TC 003.342/2022-0); iv) a maior parte dos R$ 5 bilhões de compromissos de investimento acordados coincidem com projetos que fazem parte do plano de expansão da empresa V.tal, e que não priorizam a implantação de infraestrutura de rede de alta capacidade de comunicação em áreas sem competividade e/ou desprovidas de tal infraestrutura, como exige a regulamentação da adaptação do STFC e a Lei n.º 13.879/2019 (art. 144, §3º), o que pode vir a caracterizar uso indevido de recursos públicos para a consecução de interesses privados; V) COM A ADAPTAÇÃO AUTORIZADA PELA VIA CONSENSUAL, A V.TAL ASSUME A PROPRIEDADE DEFINITIVA DA PARCELA DOS BENS REVERSÍVEIS DA CONCESSÃO DA OI QUE COMPÕEM A SUA INFRAESTRUTURA DE FIBRA ÓTICA, O QUE COMPREENDE UMA PARTE SIGNIFICATIVA DO TOTAL DA CONCESSÃO (SEGUNDO A CONSULTORIA CONTRATADA, DE 32-36 BILHÕES, A VALOR DE MERCADO, JÁ DESCONTADAS DEPRECIAÇÕES E APLICADO O FATOR DE PROPORCIONALIDADE -TC 036.367/2016-8) QUE, SEGUNDO INFORMAÇÕES DO TC 003.342/2022-0, FORAM ESTIMADOS EM CERCA DE R$ 101 BILHÕES (VALOR QUE É AVALIZADO PELA MESMA CONSULTORIA), CONFORME INFORMA A AGÊNCIA NA RELAÇÃO DE BENS REVERSÍVEIS (RBR) 2019 (PEÇA 53, P. 78); vi) o aporte adicional de R$ 4,3 bilhões em compromissos de investimentos é totalmente condicionado a uma decisão arbitral desfavorável à Administração (Anatel) – o que milita contrariamente ao interesse público, além de representar um cenário dentre vários outros desdobramentos possíveis, em virtude das incertezas associadas ao resultado desse processo –, e somente será efetuado após a liberação prioritária de R$ 5,1 bilhões à V.tal, a seu livre dispor; vii) a preferência concedida ao pagamento do valor transacionado com a AGU, no total de R$ 7,4 bilhões, bem como a renúncia aos pleitos arbitrais de reequilíbrio contratual em função da revogação da obrigação de instalação de PSM pelo PGMU IV (R$ 788 milhões) não justificam os possíveis prejuízos advindos do encerramento de processos que discutem a reversão dos bens da concessão de STFC da Oi, o valor econômico da sua adaptação e os reequilíbrios econômico-financeiros da concessionária; viii) a não aprovação da presente solução consensual não significa antecipação do término da concessão, nem expõe qualquer juízo sobre uma eventual vantajosidade quanto ao processo de caducidade da outorga da Oi, aberto há um ano pela Anatel; ix) a concessão encontra-se próxima ao seu fim, em 31/12/2025, cujo termo de extinção é de conhecimento do setor há quase 20 anos, quando a única prorrogação possível foi assinada;considerando que a situação envolve todos os contratos de STFC, pois vencem juntos na mesma data, já se observam iniciativas da Anatel em prol da continuidade da prestação do serviço, notadamente em locais onde não há interesse do mercado no seu provimento, a exemplo da submissão à audiência pública, em agosto de 2023, de proposta para a manutenção da telefonia fixa a partir de 2026 (pesquisa realizada em 24/5/2024: https://g1.globo.com/economia/noticia/2023/08/07/para-evitar-risco-de- municipios-menores-perderem-telefonia-fixa-anatel-propoe-estender-atual-modelo-de-contrato- entenda.ghtml); x) a parcela de R$ 12 bilhões de bens reversíveis não amortizados que seriam devidos à Oi. ao final da concessão, conforme consta na RBR 2019, não faz frente ao valor que a União abriria mão com a concretização da adaptação por esta solução consensual, no total de R$ 101 bilhões, segundo informado pela Anatel no mesmo documento (peça 53, p. 78), a reforçar a pertinência da manutenção da discussão sobre bens reversíveis nas instâncias competentes, inclusive no Tribunal; xi) eventual decisão desfavorável à Oi na arbitragem que inviabilize a sua recuperação judicial deve materializar os riscos levados em consideração nesta solução consensual, inclusive quanto à continuidade da prestação do STFC nas áreas que precisam do serviço, pelas frágeis garantias ofertadas no acordo; por outro lado, não afetarão a transmissão dos bens reversíveis à V.tal, que não poderão mais ser reclamados pelo Poder Concedente, dada a concretização da adaptação, ficando sob o encargo dessa empresa a realização dos R$ 5 bilhões em investimentos fixos, que, em sua maioria, já fazem parte do seu plano de negócios; e xii) a flexibilização de instrumentos como bens reversíveis e valor econômico podem se refletir de modo desfavorável nos demais contratos de concessão que devem ser adaptados, além de estender efeitos negativos aos demais setores de infraestrutura que contemplam discussões em torno desses mecanismos.
- DIANTE DO EXPOSTO, NÃO OBSTANTE COMPREENDERMOS O LOUVÁVEL ESFORÇO DA SECEXCONSENSO EM TENTAR CONSTRUIR UMA SOLUÇÃO DE EQUILÍBRIO NO CASO CONCRETO, ESTA REPRESENTANTE DO MINISTÉRIO PÚBLICO, COM FULCRO NO ART. 8.º DA IN/TCU N.º 91/2022, MANIFESTA-SE NO SENTIDO DE DESAPROVAR O TERMO DE AUTOCOMPOSIÇÃO SUGERIDO E DE ARQUIVAR O PRESENTE PROCESSO. Importante registrar que o encaminhamento ora defendido não impede, no futuro, a reabertura de nova negociação pelas partes em momento mais oportuno, especialmente após a superveniência de sentença arbitral, uma vez que o desfecho da arbitragem já iniciada pode impactar decisivamente as condições de transação aqui referenciadas.
Sem participação e sob sigilo
Finalmente, importante informar que essas negociações estão se dando desde 2020, sem que a sociedade civil - a maior interessada nos termos do acordo - tenha sido ouvida e, mais ainda, os processos relativos ao acordo correm sob sigilo em condições bastante desconfortáveis, para dizer o mínimo, como está bem descrito na matéria do reporter da revista Piauí - Breno Pires, publicada em julho deste ano, onde se descrevem perplexidades ocorridas na Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SecexConsenso), envolvendo o Ministro Bruno Dantas que preside o TCU e esta secretaria e o Grupo Esfera, que tem prestado consultoria para empresas que têm contratos negociados nesta instância, onde atua sua esposa.
Pode isso, Presidente Lula e Ministro Jorge Messias?