Capitalismo de Vigilância e o esgarçamento da Democracia

Capitalismo de Vigilância e o esgarçamento da Democracia

31 de março de 2018

Em dezembro de 2017, publiquei algumas preocupações a respeito do processo eleitoral de 2018 e as ameaças à liberdade de expressão, especialmente por conta da escalada da discussão e histeria a respeito das chamadas fake news ou notícias falsas.

De lá para cá essas preocupações se confirmaram. Principalmente as ponderações no sentido de que a grande ameaça que sofremos hoje não são as chamadas fake news, mas sim o poder das grandes plataformas da Internet que atuam em escala monopolista, como o Facebook e o Google em conjunto com outras empresas que integram seus grupos econômicos no cenário político em que nos encontramos.

Nesse sentido a revelação mais recente a respeito das ilegalidades perpetradas pelo Facebook na atividade de liberação de dados pessoais, assumida pública e internacionalmente por Mark Zulckerberg, bem como a conduta perniciosa da empresa Cambridge Analytica, que não esconde seu objetivo de, fazendo marketing eleitoral em vários países, diminuir a importância dos fatos para valorizar o caráter emocional que eles despertam em benefício dos candidatos que os contratarem, como podemos verificar no vídeo publicado no Youtube, com referências a esta prática e ao Brasil, inclusive, a partir dos 5 minutos, como se pode ver por este link.

Ou seja, se intencionalmente ou não, o certo é que a prática dessas empresas tem como resultado a coleta, tratamento e exposição abusivas de nossos dados pessoais, assim como o esgarçamento das construções institucionais democráticas e dos sistemas políticos.

Por essas e outras razões que o Comitê Gestor da Internet no Brasil divulgou no último dia 9 de março uma Nota Pública reforçando a urgência de aprovarmos uma lei de proteção de dados pessoais com garantias mínimas. É assustador que nesta altura os cidadãos brasileiros não estejam respaldados por um marco regulatório de proteção de dados pessoais, de suas personalidades e autonomia da vontade.

A Coalizão Direitos na Rede leva adiante a campanha Seus Dados São Você, defendendo a aprovação do PL 5276/2016, que é a proposta construída com a partipação ampla da sociedade civil e está na Comissão Especial da Câmara Federal sob a relatoria do Deputado Orlando Silva.

Capitalismo de vigilância

Ao assistir aquele vídeo, mais do que nunca se revela a verdade da expressão capitalismo de vigilância, difundida por Shoshana Zuboff, professora de administração e negócios pela Harvard Business School e Ph.D em psicologia social.

Para ela, o poder das grandes plataformas de aplicações, que recolhem e monetizam em larga e arbitrária escala nossos dados pessoais, no cenário das economias neoliberais, com a baixa valorização de direitos sociais e do estado de bem estar social, levam a uma exploração abusiva das nossas individualidades em dimensões coletivas, desconsiderando nossas personalidades, modulando nossos comportamentos, e comprometendo os direitos que a princípio deveriam protege-las.

É exatamente esta conjuntura que emerge do escândalo do Facebook e a Cambridge Analytica no processo eleitoral para a presidência dos EUA com Donald Trump.

Estas práticas adotadas massivamente e com abrangência planetária, além de implicar na violação das esferas individuais, têm levado ao desrespeito absoluto aos processos de construção dos sistemas democráticos em vários países, desenvolvidas com base na vigilância arbitrária, desenfreada e descolada de qualquer preocupação ética, potencializada pelo poder assustador dos algoritmos utilizados pelas plataformas utilizadas em conluio com forças políticas e econômicas ilegítimas.

Lei Eleitoral 9.504/1997

Frente a esta realidade, a lei eleitoral, recentemente reformada, me parece um equívoco gigante, pois estimula e fortalece a divulgação de propaganda eleitoral pelas redes sociais envolvidas em escândalos, reduzindo o espaço para a atuação de pequenas empresas locais de marketing eleitoral.

A lei ao tratar da propaganda eleitoral na Internet impede a veiculação de propaganda paga. Entretanto, cria a exceção do impulsionamento de conteúdos, que ocorrem justamente nas plataformas como Facebook e Google.

Art. 57-C. É vedada a veiculação de qualquer tipo de propaganda eleitoral paga na internet, excetuado o impulsionamento de conteúdos, desde que identificado de forma inequívoca como tal e contratado exclusivamente por partidos, coligações e candidatos e seus representantes. § 1º É vedada, ainda que gratuitamente, a veiculação de propaganda eleitoral na internet, em sítios:
I - de pessoas jurídicas, com ou sem fins lucrativos;
II - oficiais ou hospedados por órgãos ou entidades da administração pública direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
§ 2º A violação do disposto neste artigo sujeita o responsável pela divulgação da propaganda ou pelo impulsionamento de conteúdos e, quando comprovado seu prévio conhecimento, o beneficiário, à multa no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 30.000,00 (trinta mil reais) ou em valor equivalente ao dobro da quantia despendida, se esse cálculo superar o limite máximo da multa. § 3º O impulsionamento de que trata o caput deste artigo deverá ser contratado diretamente com provedor da aplicação de internet com sede e foro no País, ou de sua filial, sucursal, escritório, estabelecimento ou representante legalmente estabelecido no País e apenas com o fim de promover ou beneficiar candidatos ou suas agremiações.

Por que impedir a contratação de empresas de mídia ou mesmo as pessoas físicas e jurídicas de divulgarem propaganda eleitoral e, ao mesmo tempo, liberar a contratação das grandes plataformas? Se a justificativa é fortalecer a democracia, os fatos recentemente divulgados mostram que o resultado tem sido justamente o contrário.

Não seria muito mais coerente com o objetivo anunciado pelo governo e pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) estabelecer regras para a publicidade eleitoral na Internet, ampliando o espectro de agentes nacionais que poderiam se envolver com o processo, ampliando as fontes de informação e reduzindo ou mitigando os efeitos do enorme poder econômico das grandes plataformas monopolistas?

Mas a contradição vai muito mais longe, quando vemos o TSE constituindo um conselho cuja finalidade é combater as fake news e o uso de robôs no processo eleitoral, envolvendo as forças armadas, a polícia e a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN).

O TSE, a Polícia Federal e vários políticos têm adotado medidas contra as fake news, como se a mentira fosse o problema mais grave no cenário eleitoral. Repito o que já disse no post de dezembro: “mentiras, discursos enviesados por interesses políticos privados, uso do poder econômico e discursos de ódio em cenários eleitorais sempre aconteceram. A novidade é o alcance e a rapidez enormes com que as notícias, ideias e ataques se propagam com o uso de novas tecnologias na Internet” e, mais, o alto potencial das plataformas monopolistas junto com empresas poderosas de marketing político influenciarem comportamentos de grandes massas de eleitores.

A configuração institucional para essas eleições, então, na verdade estarão contribuindo para que se abram brechas inadmissíveis no direito fundamental de liberdade de expressão e na autonomia da vontade.

A fala do atual presidente do TSE, Ministro Luiz Fux, divulgada em dezembro em matéria publicada pelo Globo confirma essa afirmação, na medida em que centra o foco em fake news, ignorando a complexidade decorrente da exploração abusiva de dados pessoais e violação de direitos da personalidade:

_“É bom que os protagonistas do processo eleitoral saibam que Vossa Excelência (ministro Gilmar Mendes, atual presidente do TSE) criou uma estrutura repressiva das "fake news" e vamos criar uma estrutura preventiva das "fake news", que inclui medidas de constrição de bens, medidas de restrição de eventual liberdade daquele que estiverem em flagrante delito, se preparando pra cometer esse tipo de estratégia deletéria que, digamos assim, numa linguagem coloquial derreteram algumas candidaturas — disse Fux. A resolução aprovada nesta segunda-feira prevê, por exemplo, a remoção de conteúdo da internet, mas diz que a atuação da Justiça Eleitoral "deve ser realizada com a menor interferência possível no debate democrático". Os provedores de internet terão pelo menos 24 horas para remover o conteúdo, exceto em "circunstâncias excepcionais devidamente justificadas", quando o prazo poderá ser reduzido.

Ora, como é possível a adoção de medidas preventivas contra as fake news, sem que os direitos de liberdade de expressão, livre informação e liberdade política sejam atingidos fortemente? Medidas preventivas contra desinformação tem um potencial imenso de se tornar censura, o que não podemos mais admitir nesta altura do campeonato.

Contra a desinformação: acesso amplo à informação

Estabelecer mecanismos indiretos de censura, como anunciado pelo Ministro Fux, ou atentar contra a liberdade de expressão, reduzindo direitos que conquistamos com o Marco Civil da Internet, como o da necessidade de ordem judicial para a retirada de conteúdos e para a entrega de dados sobre os usuários, não vão solucionar o problema da desinformação. Mas é esse o objetivo de diversos projetos de lei tramitando agora no Congresso.

Acesso restrito a Internet e o comprometimento do direito à informação ampla

Até porque no Brasil temos 48% da população sem acesso a Internet e que, muitas vezes é desinformada não pela Internet, mas pela atuação da mídia tradicional. Não é novidade que os veículos da grande imprensa tradicional e predominante no Brasil, estão em grande parte nas mãos de políticos que representam o atraso histórico de oligarquias predominantes, sempre agiram no sentido de promover uma uniformização artificial da visão de mundo, levando adiante a desinformação em muitos casos. O caso da Escola Base é um exemplo estarrecedor.

Mas considerando os 52% que têm acesso a Internet a situação é muito preocupante. Os dados de 2016 divulgados pelo Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Cetic.br), departamento do Núcleo de Informação do .br (NIC.br) – braço executivo do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br), mostram que nas classes D e E, 76% dos internautas só acessam a Internet pela rede móvel e, na classe C, 46%.

Isto significa que milhões de brasileiros de baixa renda estão submetidos aos planos de dados para acesso a Internet com franquia mensal de volume de dados muito baixa – de 200Mgb a 1Gb – na quase totalidade dos casos e que, ao final da franquia, esses consumidores passam a ter acesso apenas ao Facebook e ao WhatsApp, pois as empresas de provimento de conexão contratam o chamado zero rating (tráfego de dados sem cobrança) com estas empresas.

Este fato implica em que as alternativas mais eficazes para combater a desinformação, que são justamente acessar mais informação e comparar as notícias divulgadas por diversas fontes, estão inviabilizadas para uma parcela significativa de cidadãos. Ou seja, serão milhões de eleitores que, além de sujeitos ao poder dos algoritmos, terão suas autonomias no processo de formação de opinião e exercício da cidadania bastante comprometidos.

E o pior é que mais de 70% das notícias lidas pela Internet são acessadas pelas plataformas do Facebook e Google, que calibram seus algoritmos de acordo com seus próprios critérios e interesses comerciais e políticos privados.

Portanto, uma massa imensa de usuários leem as notícias que os algoritmos aplicados pelo Facebook ou o Google querem que eles leiam, de acordo com a formação de perfis e de discriminações bastante questionáveis.

Esse é um ambiente ideal para manipulações ilegais e para o comprometimento das estruturas institucionais baseadas no respeito aos direitos fundamentais, direitos políticos, na autonomia da vontade e na garantia da democracia.

É contra o poder econômico dessas empresas, associadas de forma promíscua com grandes interesses corporativos transnacionais que as autoridades brasileiras devem agir e não contra as livres e legítimas manifestações do pensamento.

E, principalmente, as soluções para enfrentar esse desafiador e difícil cenário, para ter alguma chance de sucesso, devem ser construídas não de cima para baixo, mas com a participação ampla de todos os agentes interessados – organizações da sociedade civil, empresas, partidos políticos, comunidade científica e governo.

É com essa intenção que o CGI.br está realizando um seminário que tratará do uso da Internet para os debates democráticos e um workshop para realizar um manual de boas práticas, com participação e contribuições multissetoriais, envolvendo representantes da sociedade civil e de governos.

Seminário do CGI.br discute desafios para o debate democrático online

O Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) promove, no próximo dia 04 de abril, em São Paulo, o Seminário “Desafios da Internet no Debate Democrático e nas Eleições”. O encontro é aberto, mas tem vagas limitadas. As inscrições podem ser feitas no sítio do evento em https://cursoseventos.nic.br/desafios-da-internet-no-debate-democratico/. Haverá ainda transmissão ao vivo na Web por meio do canal do NIC.br no YouTube. As discussões estão divididas em cinco painéis que tratam de temas como discurso de ódio e fake news, perfis alternativos, identidades múltiplas e robôs, detecção de fraude informativa e ação algorítmica, informação correta, vigilância e checagem de notícias. Além disso, algumas plataformas on-line apresentarão suas iniciativas frente aos desafios dasfake news e do discurso de ódio em um último painel. O objetivo do encontro é reunir pesquisadores e especialistas do terceiro setor, da comunidade científica e tecnológica, do setor governamental e empresarial no debate sobre soluções e boas práticas relacionadas aos desafios apresentados. “Apenas com um debate aberto, participação e envolvimento dos vários atores que compõem o ecossistema da Internet é que podemos, de fato, construir soluções democráticas”, considera Sérgio Amadeu, um dos representantes da comunidade científica e tecnológica no CGI.br. “Vale pontuar que as discussões do Seminário vão além do período eleitoral em si, pois se propõem a refletir sobre o processo de manifestação política na rede de modo geral”, explica. Amadeu também reforça a importância do debate à luz do decálogo de princípios para a governança e uso da Internet, que embasa e orienta as ações e decisões do Comitê Gestor, em especial do princípio que trata da liberdade de expressão. Entre os palestrantes confirmados estão Carlos Affonso de Souza (ITS-Rio), Guilherme Pinheiro (IDP), Ivana Bentes (UFRJ), Leonardo Sakamoto (Repórter Brasil), Marcelo Bechara (ex-conselheiro do CGI.br), Mônica Rosina (Facebook Brasil) e Wilson Gomes (UFBA). A programação na íntegra, com a atualização de novos palestrantes, estará disponível no endereço https://cursoseventos.nic.br/desafios-da-internet-no-debate-democratico/. Na sequência do Seminário, nos dias 5 e 6, um workshop será realizado para convidados, visando aprofundar os debates iniciados no seminário. O CGI.br estuda a possibilidade de elaborar um Guia de Boas Práticas a partir dos resultados deste Grupo de Trabalho. Anote na Agenda Seminário Desafios da Internet no Debate Democrático e nas Eleições Data: 04 de abril (quarta-feira), a partir das 8h30 Local: Auditório Edifício Bolsa de Imóveis Av. das Nações Unidas, 11541, Mezanino, São Paulo, SP Inscrições gratuitas: https://cursoseventos.nic.br/desafios-da-internet-no-debate-democratico/ Vagas limitadas Transmissão Web: https://www.youtube.com/NICbrvideos