Capitalismo regulatório, não!

Capitalismo regulatório, não!

18 de agosto de 2023

Participei ontem da mesa que discutiu a Regulação de Plataformas Digitais e Proteção de Dados Pessoais, no 14º Seminário de Proteção à Privacidade e aos Dados Pessoais, organizado pelo CGI.br e NIC.br e compartilho aqui minhas reflexões sobre o tema. Os painéis ocorridos nos três dias de seminário podem ser acessados pelo canal do NIC.br no YouTube.

Antes de tudo, quero deixar meu testemunho e homenagem ao Danilo Doneda. Primeiro como ativista nos processos de discussão sobre o Marco Civil da Internet e da Lei de Proteção de Dados Pessoais, quando o Danilo estava sempre disponível para nos iluminar e conferir consistência e qualificando nossa atuação nas mesas democráticas de discussão dessas duas importantes leis. E segundo como Conselheira do Comitê Gestor da Internet no Brasil, pois Danilo, atuando como consultor, trazia elementos fundamentais para orientar a atuação do CGI.br e para integrar os debates internacionais dos quais participava intensamente com as iniciativas nacionais. Obrigada por tudo, Danilo!

Feita a homenagem, no campo das discussões sobre proteção de dados pessoais e diante do fato de que as atividades comerciais desenvolvidas pelas plataformas digitais, para além de estarem sujeitas à regulação da Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais (ANPD), no que diz respeito ao uso de dados pessoais para a realização de perfilamento, moderação de conteúdos entre outras práticas algorítmicas, demandam outros aspectos de regulação que estarão contemplados, por exemplo, pelas leis que estão em debate envolvendo a Liberdade de Expressão, Transparência e Responsabilidade, nos termos do PL 2630/2020 e o PL 2338/2023, que trata da Inteligência Artificial.

Nesse sentido e considerando que um dos principais pontos de impasse para a aprovação do PL 2630/2020 tem sido a definição de qual modelo de regulação será adotado, vou trazer reflexões no sentido de demonstrar que as agências reguladoras não contam com cabedal necessário para dar conta dos diversos direitos e suas vertentes de efeitos nos campos econômico, social, educacional, cultural e de direitos fundamentais afetados pelas atividades das plataformas.

Como já foi destacado aqui em diversos painéis nesses três riquíssimos dias de seminário, os serviços prestados pelas plataformas digitais trazem riscos intrínsecos especialmente pelo fato de que as atividades normalmente desenvolvidas por essas empresas, que atuam com poder de controle e abrangência inéditos nos campos da comunicação, informação, publicidade e propaganda política, com uso intenso de big data e Inteligência Artificial, implicam, por sua natureza, em riscos para direitos sociais, políticos e econômicos, individuais, coletivos e difusos e para as estruturas legais e institucionais dos países, com efeitos antiestruturais, como nos ensina a Leitícia Cesarino, no seu importante livro “O mundo do avesso - Verdade e política na era digital”, bem como Shoshana Zuboff – Capitalismo de Vigilância, Eugeny Morozov – A ascensão dos dados e a morte da política.

Nesse cenário, destaco aqui vasta doutrina nacional e internacional, especialmente os trabalhos de Alketa Peci e Bruno Queiroz Cunha, desenvolvidos para o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), demonstrando que “Como sucedâneo de reformas institucionais de caráter liberalizante e pró-mercado, um tipo específico e delimitável de órgão regulador, qual seja, a agência reguladora, passou a integrar o roteiro de propostas de reformas administrativas mundo afora, aportando no Brasil nos anos 1990. Esse movimento reformista ancorou-se, em particular, em concepções econômicas neoliberais, difundidas principalmente nos EUA e Reino Unido a partir dos anos 80" e no Brasil a partir da edição da Lei 8.031/1990, que criou o Programa Nacional de Desestatização e deu origem a processos de privatização em diversos setores, como a energia elétrica, o gás, a radiodifusão e as telecomunicações.

Foi no ambiente econômico com forte viés de liberalização econômica, desregulamentação, com o Estado abdicando em grande medida do seu papel de garantidor do estado de bem estar social, que as empresas dominantes no campo das TIC se desenvolveram, ganhando proporções nunca vistas e resistindo sempre às iniciativas de retomada pelo Estado do seu papel de regulador, como temos assistido no processo de discussão do PL 2630, entre outras iniciativas internacionais.

Foram criados novos aparatos institucionais, com a finalidade de se implementar modelo adaptado à essa nova etapa do capitalismo, nascida do auge do neoliberalismo. As agências reguladoras surgem, então, no contexto do que a doutrina denomina de “capitalismo regulatório”, dadas as novas prioridades dos governos na gestão econômica. No Brasil, o histórico de atuação das agências reguladoras, criadas com o objetivo de conferir segurança jurídica para os agentes econômicos interessados nas privatizações que passaram a ocorrer a partir dos anos 1990 e equilíbrio entre interesses desses agentes e consumidores e sociedade, revela graves conflitos instaurados nesses últimos 28 anos, seja por ação e por omissão desses organismos, com forte predomínio nos processos técnicos promovidos pelas agências correspondentes à construção do arcabouço normativo voltado para orientar o funcionamento dos diversos setores.

Entre os problemas que emperram uma atuação das agências afinadas com o interesse público está o fato de que, com muita frequência, os agentes públicos ou vêm de empresas privadas ou saem da agência e vão trabalhar nas empresas reguladas, comprometendo a produção de normas que deveriam estar voltadas para a universalização dos serviços públicos, para a modicidade de tarifas e preços viabilizando o acesso e a garantia de direitos fundamentais e sociais como a saúde e acesso a outros serviços essenciais, inclusive o SCI com desigualdade tão profunda, como mostram os dados do CETIC.br.

Os problemas com a atuação das agências no Brasil estão fartamente documentados em inúmeros Acórdãos do TCU – órgão ao qual a Constituição Federal atribuiu o papel de fiscalizar as agências, demonstrando não só danos difusos quanto ao direito de acesso aos serviços essenciais, mas também na insuficiência de políticas públicas para incentivar investimentos necessários para atender as demandas de infraestrutura para o desenvolvimento econômico e social do país, garantia de concorrência, mas também irregularidades graves quanto à má versação de recursos públicos.

A situação de enorme desigualdade no acesso aos serviços de telecomunicações e acesso a Internet no Brasil, a insuficiência de infraestrutura de redes depois de mais de 24 anos de privatização, a perda bilionária de bens reversíveis relativos às concessões da telefonia fixa, o debacle da OI , a situação caótica da saúde privada, desrespeitos reiterados a direitos econômicos dos consumidores de energia elétrica, estão entre os vultosos prejuízos decorrentes de processos claros de captura das agências, que colocam o Brasil em posição de desigualdade vergonhosa.

E considerando o tema mais atual da regulação das plataformas, temos assistido a ANATEL empenhada em fazer lobby aberto e em certa medida questionável para se tornar o órgão regulador das plataformas digitais, a despeito dos incontornáveis limites legais para que isto ocorra, tendo em vista suas atribuições estabelecidas pela LGT.

Destaco que a doutrina cunhou a expressão 'captura' para indicar a situação em que as agências se transformam em via de proteção e de privilégios para os setores empresariais regulados e perdem a condição de autoridade comprometida com a realização do interesse coletivo, passando a produzir atos destinados a legitimar a realização dos interesses privados e divorciados do interesse público, manifestando-se como uma distorção das finalidades dos setores burocráticos estatais, desvirtuando os princípios que orientam a administração pública, nos termos do art. 37, da CF, comprometendo a finalidade da regulação, produzindo efeitos indesejáveis de diminuição da qualidade dos serviços e da eficiência, gerando insegurança e instabilidade para empresas e para os cidadãos.

O fenômeno da captura no Brasil já foi reconhecido, inclusive, por Tribunais do país em diversas ações públicas e por decisões do TCU. Seguem aqui alguns exemplos: Apelação Cível nº 342.73910, julgada pelo Tribunal Regional Federal da 5ª. Região, quando em Ação Civil Pública promovida pelo Ministério Público Federal foi reconhecida a ilegalidade da nomeação de conselheiro da Anatel que já tinha ocupado cargo para o concessionário regulado. Vale a transcrição de parte da decisão:

"diante de um conflito envolvendo interesses contrapostos da sociedade e das prestadoras de serviço de telecomunicações, a sua atuação estaria comprometida com os interesses deste último segmento. Necessário, pois, para que alguém represente a sociedade, não esteja comprometido com um segmento específico desta, a fim de que possa ter uma atuação imparcial em prol do bem comum' [...] A nomeação dos apelantes como membros do Conselho Consultivo da ANATEL representa o que a doutrina estrangeira e alguns doutrinadores brasileiros têm denominado de captura da agência pelos interesses regulados. Ocorre a captura do ente regulador quando grandes grupos de interesses ou empresas passam a influenciar as decisões e atuação do regulador, levando assim a agência a atender mais aos interesses das empresas (de onde vieram seus membros) do que os dos usuários do serviço, isto é, do que os interesses públicos".

Também na Ação Civil Pública promovida pela PROTESTE – Associação de Consumidores, transitou em julgado decisão condenando a ANATEL a incluir nos contratos de concessão da telefonia fixa os inventários com a descrição dos bens reversíveis entregues à iniciativa privada para a exploração do serviço e que, de acordo com a Lei Geral de Telecomunicações, deveriam voltar à União para se garantir o interesse e patrimônio públicos. Naquela ação ficou reconhecido que:

“A própria ANATEL, embora tenha por responsabilidade a fiscalização desses bens, não tem cumprido esse importante papel, conforme apurado na Auditoria Interna nº 11/2010 (fls. 404-424), da qual se pode concluir que: a) No período de 1998/2001, “a Anatel não procedeu a nenhuma atividade de acompanhamento e controle dos bens reversíveis”; b) Não existem documentos ou registros que auxiliem na atividade de controle dos bens reversíveis; c) o Regulamento de Bens Reversíveis estabelece que as operadoras devem remeter à Anatel, anualmente, o Relatório de bens reversíveis, entretanto não cumprem, pois não têm pleno conhecimentos dos seus bens, por falta de inventário; d) Existe a necessidade da própria Anatel ter conhecimento dos bens reversíveis, vinculados à prestação de serviços das concessionárias de telecomunicações, por ser indispensável ao monitoramento da continuidade de prestação do serviço” (Proc nº 29346-30-2011.4.01.3400).

Ainda com relação à Anatel, o TCU já decidiu que:

“Decorridos dez anos do processo de privatização, a ANATEL ainda não possuía os dados necessários para a realização da regulação econômica de uma concessão de serviço público e que não estava atuando efetivamente no cumprimento das obrigações legais de acompanhamento do equilíbrio econômico-financeiro das concessões (TC 019.677/2006, Acórdão 2.692/2008 – Plenário).

A situação no setor de Planos de Saúde, regulado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) não é diferente e tem lançado milhões de consumidores em situação de extrema vulnerabilidade, como se pode concluir pela quantidade enorme de ações que ocupam o Poder Judiciário. Quanto à atuação desta agência há estudos imparciais, do mais alto nível de confiabilidade científica, realizados pelo Instituto de IPEA e pelo TCU, no Acórdão 2.485/2012-TCU-Plenário (TC 030.285/2012-7), que corroboram o entendimento sobre a grave ineficiência da atuação da agência.

Fiz esta introdução para justificar meu entendimento no sentido de que o modelo de agência reguladora – sustentáculo do neoliberalismo, ainda que se propague sua autonomia e independência, historicamente tem atuado de forma capturada pelos interesses privados, sendo claramente inadequado para a regulação das plataformas digitais, interferindo de forma determinante como entraves para a efetividade de direitos fundamentais e sociais e para o desenvolvimento do país.

Sendo assim, vejo muito mais sentido numa estrutura regulatória composta por um órgão representativo das empresas, por um Conselho Interministerial e pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

Isto porque a atuação das plataformas produz efeitos e implica múltiplos setores com potencial de impacto em larga escala, repita-se, em direitos fundamentais, econômicos, culturais, educacionais, políticos, sociais e trabalhistas entre outros.

Um modelo centralizado de regulação e com baixa representação democrática, como é o caso das agências em virtude de suas configurações legais, não dará conta de regular devidamente para garantir direitos em tão largo espectro.

Artigo publicado no dia 17 junho na Isto É, pelo Prof Pedro Henrique Ramos, converge com esse entendimento quando afirma que numa entidade centralizada “surgem as condições ideais para captura por interesses corporativos e por governos com tendências autoritárias”.

Sendo assim, a proposta apresentada pela Comissão Especial de Direito Digital da do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, parece mais adequada às necessidades de regulação, ao propor o Sistema Brasileiro de Regulação de Plataformas Digitais tripartite, composto por um Conselho de Políticas Digitais, CGI.br e Entidade de Autorregulação.

Divirjo apenas quanto à composição do conselho, pois entendo que ele deva ser mais amplo, integrado por diversos ministérios que já contam com seus órgãos específicos com poder regulatório, nos termos do art. 87, incs. I e II, da CF, e poder de polícia para promover fiscalização e imposição de sanções, a exemplo do que ocorreu recentemente com a edição da Portaria 351/2023, pelo Ministério da Justiça, por meio da qual se imbuiu a Secretaria Nacional do Consumidor de adotar medidas junto às plataformas, no contexto da Operação Escola Segura.

Ou seja, entendo que o Conselho poderia ser integrado pelos Ministérios da Justiça, Direitos Humanos, Educação e Cultura, Saúde, Trabalho, Casa Civil – que hoje conta com a Secretaria de Políticas Digitais, Comunicações, CGI.br, tendo em vista as atribuições que recebeu pelo Marco Civil da Internet, e também pela ANPD, tendo em vista o caráter técnico altamente especializado do acompanhamento da exploração de dados pessoais por empresas e setores públicos. Importante que o Conselho conte também com representação da sociedade civil. Quanto ao papel a ser desenvolvido pelo CGI.br, entendo que a proposta apresentada pelo PL 2630/2020, atribuindo ao Comitê o papel de promover e organizar os debates em torno do Código de Condutas voltado para orientar a elaboração dos termos de serviços das plataformas digitais garantirá caráter multissetorial imprescindível, quando se trata de atividades com impacto em tantos setores.

Outras atividades que se pretenda atribuir ao CGI.br com caráter normativo ou fiscalizatório poderão desnaturar o Comitê com impactos para o Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), o que seria indesejável, diante do histórico de sucessos da entidade, que tem sido um modelo internacional para a governança da Internet.

Importante destacar, ainda, que o Decreto 8.771/2016, que regulamenta o Marco Civil da Internet (art. 17 a 20), atribuiu à Secretaria Nacional do Consumidor, ao Sistema Brasileiro da Concorrência e a ANATEL, em linha com as diretrizes estabelecidas pelo CGI.br, o papel de garantir transparência e fiscalização das plataformas, para garantir enforcement aos direitos estabelecidos pela lei; mas esta estrutura está atrofiada e deveria, a exemplo do que começou a fazer o Ministro Flávio Dino, a atuar para enfrentar as ilegalidades que vêm sendo perpetradas pelas Bigtechs.

Por fim, fundamental que os debates em torno da definição de uma estrutura regulatória para lidar com as plataformas digitais, inteligência artificial e proteção de dados deve se dar com o envolvimento intenso da sociedade civil, de modo a integrar os diversos atores interessados em processo articulado, convergente e democrático.