Desde a edição do Marco Civil da Internet (MCI), em abril de 2014, venho sustentando que o art. 7º, da Lei 12.965/2014, que assegura os direitos dos usuários, trouxe para o campo do serviço de conexão a Internet, prestado seja pela rede fixa ou seja pela rede móvel, alguns dos princípios típicos dos serviços públicos.
O caráter essencial do serviço de conexão a Internet e o Marco Civil
Ainda que o serviço de conexão a Internet não possa ser considerado um serviço público, na acepção jurídica do direito administrativo, especialmente porque não está assim previsto pela Constituição Federal, como os serviços de energia elétrica, água, gás e telecomunicações, por exemplo, ele se configura como serviço de alto interesse público, como reconheceu o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), quando estabelece que todos têm direito de acesso e que ele é essencial para o exercício da cidadania.
Tratando-se, então, de um serviço essencial e de importância notória para o desenvolvimento econômico, social e cultural, é absolutamente razoável e legítimo que o legislador tenha atribuído ao serviço de conexão a Internet atributos e garantias típicos dos serviços públicos.
Entre esses princípios típicos dos serviços públicos, foram trazidos pelo MCI para o serviço de conexão a Internet:
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a regularidade e continuidade, quando no inc. IV, do art. 7º, está garantida a “não suspensão da conexão à internet, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização”;
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regularidade e adequação, quando no inc. V, do mesmo art. 7º, fica garantida a manutenção da qualidade contratada da conexão à internet”;
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segurança, quando nos incs. I, II e III, também do art. 7º, protegem a privacidade e intimidade, e
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igualdade e neutralidade, quando o art. 9º impõe que “o responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação”.
Apesar da clareza desses dispositivos legais, o que tem acontecido nos últimos quatro anos é que as principais operadoras do serviço de conexão a Internet pela rede móvel têm fornecido em larga escala planos com franquias mensais, estabelecendo um limite de volume de dados bastante reduzido, insuficiente para que os consumidores tenham um acesso não discriminatório a web e que viabilize o exercício da cidadania, como está previsto no MCI. Isto porque ao final do volume de dados contratado ou o consumidor tem o serviço interrompido e deixa de ter acesso a Internet, ou passa a ter acesso apenas ao Facebook e WhatsApp, com desrespeito às garantias de continuidade e de não discriminação por aplicação.
Ou seja, a rigor já temos o direito à continuidade, o que tornaria desnecessária uma outra lei. Todavia, o desrespeito a este direito diante dos olhares inertes dos organismos responsáveis nos faz ponderar sobre a conveniência da Lei do Ceará.
São responsáveis pela fiscalização sobre o cumprimento do MCI a Secretaria Nacional de Defesa do Consumidor, a Agência Nacional de Telecomunicações e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, designados pelo Decreto 8.771/2016 – art. 17 e seguintes, que regulamenta o MCI, para fiscalizar e dar concretude aos direitos dos Internautas.
A respeito das ilegalidades que emergem dos planos de serviço com franquia e bloqueios, que predominam no mercado brasileiro atingindo e prejudicando especialmente os consumidores das classes C, D e E, vale referir posts anteriores publicados aqui no blog: Zero rating - A Internet dos pobres e Milhões de internautas no planeta acreditam que a Internet se resume ao Facebook.
A Lei Estadual 16.734/2018 do Ceará e o acesso a Internet
Diante do quadro de desrespeito ao MCI e de prejuízo enorme aos consumidores, o Estado do Ceará aprovou a Lei 16.734/2018, proibindo as operadoras do serviço de conexão a Internet de cortar o acesso ao final da franquia contratada, sob pena de pagarem multa por descumprimento. Ficou estabelecido que, finda a franquia, a velocidade do provimento pode ser reduzida mas a continuidade do acesso deve ser garantida.
Na verdade, a lei do Ceará repete o que já está garantido pelo inc. IV, do art. 7º, do MCI. Entretanto, considerando a importância e o alto interesse público do serviço de acesso a Internet, bem como a resistência das empresas que operam este serviço em cumprir o MCI, assim como a inércia dos órgãos competentes para garantir a efetividade dos direitos em questão, é bem vinda a nova lei.
A reação das operadoras As operadoras representadas pelo SindiTelebrasil tem afirmado que a lei do Ceará é inconstitucional, destacando que a Constituição Federal define que é prerrogativa exclusiva da União, e não dos Estados, legislar sobre telecomunicações”, diz nota da entidade enviada ao Tele.Síntese. A ACEL – Associação Nacional das Operadoras Celulares também informou que estão ajuizando ações de inconstitucionalidade para impedir a lei.
Mas as operadoras estão equivocadas. É certo que, de acordo com o art. 22, inc. IV, da Constituição Federal, é da União a competência exclusiva para legislar sobre telecomunicações.
Entretanto, o art. 24, inc. VIII, da mesma Constituição estabelece que “compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar CONCORRENTEMENTE sobre direito do consumidor.
Fundamental, nessa direção, entender que o serviço de conexão a Internet não é um serviço de telecomunicações, mas sim um serviço de valor adicionado, como já está pacífico no Superior Tribunal de Justiça e no Supremo Tribunal Federal.
Esse entendimento se baseia no art. 61, da Lei Geral de Telecomunicações e na Norma 4, de 1995, do então Ministério das Comunicações, pois ambas as normas deixam expresso que a conexão a Internet é serviço de valor adicionado. Destaco aqui outro post que trata deste tema ANATEL não deve regular franquias no serviço de valor adicionado.
As próprias operadoras, em processos onde discutem a pretensão das fazendas estaduais de cobrarem ICMS sobre o serviço de conexão a Internet, para evitar o pagamento deste tributo que não incide sobre serviços de valor adicionado, sustentam este mesmo entendimento.
Portanto, acredito que, se as Cortes Superiores permanecerem coerentes com sua jurisprudência reiterada quanto à natureza do serviço de conexão a Internet e que também reconhece a relação de consumo entre operadoras e internautas, a competência concorrente dos Estados para legislar sobre defesa do consumidor deverá prevalecer.
Este é o resultado que se adequa ao que está na lei e que atende o interesse público. Ainda que a eficácia da lei se restrinja ao Estado do Ceará, sendo mantida, funcionará como estímulo para que as garantias conquistadas com o MCI sejam de fato apropriadas pelos brasileiros.