26 de janeiro de 2017
No dia 19 de janeiro o site Olhar Digital publicou matéria a respeito de relatório divulgado pela Mozila - "Internet Health Report v0.1", a respeito de como o uso e a exploração da Internet vêm se desenvolvendo (leia a matéria).
Os fatos revelados pelo relatório são assustadores:
- 55% dos brasileiros acreditam que o Facebook é a internet, enquanto nos EUA só 5% dos usuários entendem assim;
- A maioria das pessoas ainda não entende como a internet funciona em um nível básico;
- A maioria dos usuários jovens não conseguem distinguir notícias de propagandas;
- O Google é responsável por mais de 75% das pesquisas feitas na internet, e por 95,9% das pesquisas feitas de smartphones;
- O Facebook é a rede social com maior número de usuários no mundo (com 1,7 bilhão), a empresa também é dona das outras duas redes sociais que compõem o pódio: WhatsApp e Messenger, com 1 bilhão cada.
- Apesar de apenas 25% da população do planeta dominar a língua inglesa, mais da metade (52%) da internet está em inglês.
Outra matéria publicada ainda em 2015 pela Quartz, já apontava esses fatos e fazia as seguintes ponderações:
“E o que significa se massas de novos usuários não estiverem on-line através da web aberta, mas na rede fechada proprietária onde eles devem jogar pelas regras do CEO do Facebook, Mark Zuckerberg? Isso é mais do que uma questão de semântica. As expectativas e comportamentos do próximo bilhão de pessoas para estarem on-line terá efeitos profundos sobre a forma como a internet evolui. Se a maioria da população online do mundo passa o tempo no Facebook, consequentemente, os responsáveis políticos, empresas, startups, os desenvolvedores, organizações sem fins lucrativos, editoras, e qualquer outra pessoa interessada em se comunicar, para serem eficazes, terão de ir para o Facebook. Isso significa que eles, também, terão de jogar pelas regras de uma empresa. E isso tem implicações para todos nós”.
Ocorre que, tratando de acesso à internet, estamos falando de direito fundamental, como já reconheceram a Comissão de Direitos Humanos da ONU há quase 5 anos e o Net Mundial, ocorrido em abril de 2014 no Brasil, buscando garantir o carácter global e aberto da Internet como motor para acelerar o progresso rumo ao desenvolvimento econômico, social e cultural. O reconhecimento institucional numa perspectiva mundial do acesso à internet e à sua respectiva infraestrutura como um bem comum e um direito fundamental é um ganho extraordinário, na medida em que a internet não pode estar dividida em esquemas nacionais, pois a interconexão entre as infraestruturas e um sistema internacional de funcionamento é que propiciam o caráter aberto da rede e a ampliação do direito à comunicação. Por outro lado, é importante que as normas de governança da internet de cada país estabeleçam os direitos dos usuários e os limites para a exploração comercial e uso das redes pelos agentes econômicos e governos, de modo a compatibilizar as normas de governança com os direitos do consumidor e com a preservação de ambiente concorrencial, das diferenças culturais regionais, sociais, econômicas e políticas de cada nação.
Essa perspectiva, então, traz implicações diretas para os formuladores de políticas públicas e órgãos reguladores, assim como para os agentes privados que exploram no setor. Nesse sentido, podemos nos orgulhar de estarmos um passo à frente de muitos países, pois, além de termos o Comitê Gestor da Internet – órgão multirepresentativo envolvido na governança da internet, conseguimos à duras penas a aprovação do Marco Civil da Internet em abril de 2014, sendo que de seu texto consta o objetivo expresso do “direito ao acesso à internet a todos” (art. 4º) e o reconhecimento deste acesso como essencial para o exercício da cidadania” (art. 7º).
Sendo assim e considerando que a Internet se desenvolve sobre camadas: a) a da infraestrutura de telecomunicações; b) a da arquitetura das redes de acesso à internet e c) a de aplicações e conteúdos, temos de reconhecer a complexidade desse sistema e suas dificuldades para que a sociedade civil possa fazer valer seus direitos frente aos interesses econômicos privados dos grandes agentes econômicos, que cada vez se concentram mais de forma vertical, associando-se para explorar a infraestrutura de telecomunicações e comercializar serviços de acesso à internet e fornecimento de aplicações e conteúdos, com o objetivo de impedir a concorrência efetiva e manter altos preços de forma cartelizada, colocando em risco o caráter democrático da rede.
Essa disputa ocorre em pelos menos três frentes – telecomunicações, acesso à internet, que é serviço de valor adicionado (art. 61, da LGT e Norma 04/95 do Ministério das Comunicações) e, portanto, está fora da atribuição da ANATEL, e comercialização de aplicações e conteúdos, também fora do campo de atuação da ANATEL.
Um conjunto de novos meios de produção
E a disputa é dura, pois, ao tratar de Internet, estamos tratando de um conjunto de novos meios de produção sujeitos ao poder econômico de apropriação pelos agentes econômicos, com vistas a ampliar o máximo possível a mais valia sobre este novo modo de produção.
Marx desde o final dos anos 1800, afirmou que a natureza do sistema capitalista é o capital subordinar a seu interesse todo segmento produtivo. Demonstrou mais: que o resultado do desenvolvimento das relações sociais nesse contexto dão forma a estrutura econômica da sociedade, que é a base objetiva sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política à qual correspondem determinadas formas de consciência social. Ou seja, “o modo de produção da vida material condiciona o processo da vida social, política e espiritual em geral. Não é a consciência do homem que determina o seu ser, mas, pelo contrário, o seu ser social é que determina a sua consciência”.
É com base nesta realidade que temos de nos posicionar diante das disputas hoje em curso, estando entre as principais a interpretação quanto à abrangência do direito à neutralidade da rede, expresso nos arts. 3º e 9º, do Marco Civil da Internet, e a regulamentação das hipóteses em que os agentes econômicos estão autorizados a quebrar a neutralidade.
Isto porque é a neutralidade – conceito jurídico forrado de aspectos técnicos para a aferição de seu cumprimento – que garante o tratamento isonômico, não discriminatório e sem degradação do tráfego dos dados lançados nas redes, deixando-se de lado questões comerciais, econômicas, políticas, religiosas etc ...
Nesses processos que estão em curso, é preciso conquistar mecanismos regulatórios que possibilitem a socialização dos ganhos econômicos vultosos que a internet proporciona, inclusive e especialmente pelo USO DOS DADOS PESSOAIS, ameaçando a privacidade. É por isso que pressionamos tanto para a aprovação de uma Lei de Proteção de Dados Pessoais, que se faz cada vez mais urgente.
É preciso evitar que a Internet se torne um espaço que se presta essencialmente a relações comerciais dominadas por grandes grupos econômicos, que cada vez mais se concentram, pondo em risco o poder de escolha dos usuários, o acesso livre à informação e à cultura e à liberdade de expressão.
As armadilhas
Por isso devemos estar atentos para as armadilhas perigosas que quero nomear aqui de forma bem clara, pois o mercado as apresenta como um benefício para o usuário da Internet. São elas:
1 – Centrar as políticas públicas de ampliação da infraestrutura de telecomunicações nas tecnologias móveis e de forma completamente desvinculada do regime público é um erro. É o regime público sobre a infraestrutura que possibilita investimentos públicos (utilização do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações – FUST) e a imposição de metas de investimento pelas empresas, a fim de universalizar o acesso levando a infraestrutura a todas as regiões e localidades do país, bem como o poder do Estado de garantir que parte da capacidade das novas redes para a implantação de políticas públicas de inclusão digital.
Quanto a este ponto, dezenas de entidades estão reunidas na Campanha Banda Larga é um Direito Seu já há mais de 4 anos, com proposta apresentada oficialmente ao Ministério das Comunicações, propondo que a regulação se dê em camadas e buscando o cumprimento do art. 65, § 1º, da LGT, que estabelece que os serviços essenciais não podem ser prestados apenas em regime privado como vem acontecendo. A LGT estabelece no art. 18, inc. I, atribuição legal para que o Poder Executivo estenda o regime público para os serviços essenciais.
A proposta da Campanha se apoia também no Plano Nacional de Banda Larga, instituído pelo Decreto 7.175/2010, que recuperou a Telebras, atribuindo a ela no art. 4º, uma série de funções voltadas para impulsionar a distribuição democrática da infraestrutura por todo o país, de modo a garantir o acesso à internet para todos os brasileiros.
A proposta se refere também às redes públicas hoje associadas aos contratos de concessão da telefonia fixa. São redes de transporte e acesso com valor estimado pela ANATEL de R$ 71 bilhões e que, com base em nova tecnologia – o GFAST, podem ser associadas a novas redes de fibra ótica para prover banda larga em alta capacidade. Assim, entendemos que a proposta do PLC 79/2016 contraria frontalmente os caminhos que podem levar à inclusão digital.
2 – Os abusivos planos limitados, com franquias pífias e acessos gratuitos a determinados aplicativos – no caso o Facebook e o WhatsApp – e bloqueio à todo o resto da internet, impedindo o pleno exercício da cidadania, uma vez que há diversos serviços públicos hoje que só se pode utilizar pela internet (ex: processos judiciais digitais, obtenção de certidões forenses, entre outros); lembrando que as empresas estão pretendendo aplicar o mesmo modelo de negócios para os acessos à internet pela rede fixa de comunicação de dados.
O Marco Civil é muito claro quando estabelece que o acesso à internet é essencial e que a interrupção do fornecimento deste serviço só pode se dar por falta de pagamento.
Sei que num país com as características sócio-econômicas como do Brasil, é um desafio falar contra os acessos gratuitos ou projetos como o internet.org de MarK Zuckerberg, que vem sendo implantado em diversos países pobres (último acordo foi assinado ontem com o Panamá), de expandir o acesso à internet pela tecnologia móvel.
Entretanto, é nosso dever alertar para o caráter discriminatório desses planos de negócios, cujo resultado é claramente a criação de castas de consumidores, sendo que quem tem mais dinheiro contrata acessos ilimitados e na rede fixa e os consumidores de baixa renda ficam sujeitos a planos limitados e navegação restrita, que não pode ser considerada acesso a Internet, sem possibilidade de exercer plenamente a cidadania e de exercer plenamente o direito de escolha, cultura e liberdade de expressão.
Nós conseguimos escapar do discurso tacanho durante todo o processo de aprovação do MCI de que esta lei seria uma forma de o Estado cercear a liberdade na Internet, e conseguimos demonstrar que a Internet é um espaço novo que desperta grandes interesses econômicos e políticos, em razão do que são necessárias regras para proteger os interesses públicos relacionados e a democracia.
Não podemos ficar sujeitos a essa nova versão de colonização. É disto que se trata. Os agentes econômicos estão correndo para se apropriar da Internet, com riscos concretos de aniquilamento das pequenas empresas, da inovação, das manifestações culturais regionais, com efeitos danosos ao direito de liberdade de expressão, como mostra a pesquisa da Quartz, e nós precisamos reagir urgentemente.
Além disso, não podemos perder de vista que a contrapartida ao acesso gratuito a essas aplicações é muito cara: é o desrespeito às garantias de privacidade, direito de escolha e liberdade de expressão. É o uso dos nossos dados pessoais para uso publicitário e político. O papel, então, das entidades de defesa do consumidor e direito à comunicação é informar a sociedade a respeito dos importantes direitos conquistados com o Marco Civil da Internet e promover uma mobilização constante para a defesa da democratização da rede.