5 de março de 2017
Zero rating – Efeitos sobre a neutralidade, direitos concorrenciais e desenvolvimento econômico, social e cultural (Palestra na IX Escola do Sul de Governança da Internet – SSIG 2017 – 4 de março de 2017 – Rio de Janeiro)
Para tratar dos efeitos da prática comercial do zero-rating e acessos patrocinados, é fundamental considerar especialmente os países em desenvolvimento, com insuficiência de infraestrutura de telecomunicações que dá suporte ao serviço de conexão à internet.
Isto porque a baixa penetração de infraestrutura tem sido a justificativa usada pelos provedores de acesso à internet, para centrarem suas práticas comerciais nos planos com limites de dados, com franquias baixas, que no Brasil variam entre 200Mb e 1Gb por mês.
E no caso do Brasil, é incontestável que os Poderes Públicos vêm negligenciando há anos o dever de desenvolver políticas públicas para promover a universalização da infraestrutura, a despeito de os consumidores pagarem por ano, aproximadamente R$ 2,5 bilhões para o Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (FUST).
Do total desses recursos recolhidos de 2002 a 2015, segundo levantamento do Tribunal de Contas da União, 79% foi aplicado em usos desconhecidos; 20% em usos identificados e apenas 1% em universalização.
Mas no Brasil, não só a infraestrutura de telecomunicações deve ser universalizada, por força do art. 21, inc. XI, e art. 175, da Constituição Federal. Também o serviço de conexão à internet passou a ser universal, por força do que dispõe o art. 4º, do Marco Civil da Internet (MCI), estabelecendo que este serviço deve estar acessível a TODOS, em razão do que os Poderes Públicos das três esferas da federação passaram a ter o dever de desenvolverem políticas públicas para a inclusão digital.
Além disso, o art. 7º, do mesmo MCI, estabeleceu que se trata de um serviço essencial para o exercício da cidadania que só pode ser interrompido se o consumidor estiver em débito com o provedor.
O MCI introduziu também a neutralidade da rede como princípio e direito, determinando que “o responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação” (art. 9º).
Diante da positivação de todos esses direitos, é importante considerar os dados levantados pelo CETIC (Nic.br) na TIC Domicílios de 2015, que, acredito devem refletir realidades análogas a outros países da América Latina.
Percentual de domicílios com acesso à internet por classe social – 2015
Classe A 97%
Classe B 82%
Classe C 49%
Classe D e E 16%
Proporção (%) de usuários de internet por classe social – 2015
Classe A 95% Classe B 82% Classe C 57% Classe D e E 28%
Percentual de usuários de internet que acessam apenas por dispositivos móveis - 2015
Classe A 8% Classe B 19% Classe C 44% Classe D e E 65%
Percentual de indivíduos que possuem telefone celular com plano pré pago - 2015 Classe A 39% Classe B 65% Classe C 81% Classe D e E 82%
Ou seja, há dezenas de milhões de brasileiros que acessam a internet de forma restrita. O Ministério Público Federal representou ao CADE em 2016 contra as 4 principais empresas provedoras de conexão à internet, que concentram quase que 100% do mercado e praticam o zero-rating. Segundo o MP, “estima-se que, aproximadamente, 253,600 milhões de usuários correspondente a 98,35% dos clientes das operadoras de telefonia móvel, sejam potenciais usuários de planos que proporcionam acesso privilegiado a determinadas aplicações, como é o caso dos planos que ficaram conhecidos como de zero rating”(Inquérito Administrativo 08700.004314/2016-71).
Feitas essas considerações, é importante analisar a prática do zero-rating sob os seguintes questionamentos:
1 – Planos com franquia associados a zero-rating e bloqueios estariam proibidos pelo MCI? 2 – A prática do zero-rating configura quebra de neutralidade ou desrepeito a direitos concorrenciais? Tem efeitos negativos quanto à inovação? 3 – A prática do zero-rating tem implicações no desenvolvimento cultural, social e político?
E nossas respostas são as seguintes: 1 – Planos com franquias não estão proibidos e, enquanto a franquia está válida, poderíamos sustentar que não haveria desrespeito à neutralidade, pois o tráfego dos dados na rede, independente do modelo de cobrança, ocorre de forma isonômica. Entretanto, depois do Decreto 8.771/2016, até o zero-rating praticado enquanto a franquia está válida pode ser questionado, tendo em vista o que dispõe o seu art. 10. Vejamos: Art. 10. As ofertas comerciais e os MODELOS DE COBRANÇA de acesso à internet devem preservar uma internet única, de natureza aberta, plural e diversa, compreendida como um meio para a promoção do desenvolvimento humano, econômico, social e cultural, contribuindo para a construção de uma sociedade inclusiva e não discriminatória.
2 – Entretanto, findo os dados contratados, o impedimento de acesso a tudo o que está disponível na internet e o acesso à apenas determinadas aplicações configuram claro e incontestável desrespeito à neutralidade da rede, na medida em que ocorrem duas condutas proibidas: bloqueio e discriminação. Esta prática, então, deve ser analisada também à luz do que dispõe o art. 9º, do Decreto 8.771/2016:
“Art. 9º Ficam vedadas condutas unilaterais ou acordos entre o responsável pela transmissão, pela comutação ou pelo roteamento e os provedores de aplicação que: I - comprometam o caráter público e irrestrito do acesso à internet e os fundamentos, os princípios e os objetivos do uso da internet no País; II - priorizem pacotes de dados em razão de arranjos comerciais; ou III - privilegiem aplicações ofertadas pelo próprio responsável pela transmissão, pela comutação ou pelo roteamento ou por empresas integrantes de seu grupo econômico”.
Além disso tem claros impactos sobre pequenas e médias empresas, pois a associação de 3 grandes provedores de conexão à internet, que dominam mais de 70% do mercado, com os gigantes das redes sociais Facebook, WhatsApp e Twitter, por exemplo, funcionam como uma barreira intransponível para startups, abalando consequentemente a inovação.
3 – Esse modelo de negócios tem efeitos indesejáveis para o desenvolvimento cultural, social e político. Hoje mais de 40% das notícias lidas na Internet são acessadas pelo Facebook (consultoria Parse.ly - 2015), que contrata com empresas jornalísticas o produto Instant Articles, que traz para dentro de sua plataforma um resumo das notícias; ou seja, o leitor acessa apenas o Facebook e não o site do autor da notícia e, além disso, o consumidor sequer pode ter acesso à integra do artigo ou compartilhar o conteúdo em outras redes sociais. Assim, o Facebook que hoje conta com mais 1 bilhão de usuários em suas plataformas, termina por influenciar o direito à informação em todo o planeta e, especialmente, nas regiões de pobreza e em desenvolvimento. Um importante artigo de Emilly Bell, diretora do Tow Center for Digital Journalism na Columbia Journalism School, traduzido por Sergio Kulpas intitulado "Facebook engolindo o jornalismo", traz importantes reflexões para demonstrar que: “As redes sociais não engoliram apenas o jornalismo – elas engoliram tudo. Engoliram campanhas políticas, o sistema bancário, histórias pessoais, a indústria do lazer, o varejo, até governos e segurança. O telefone móvel passou a ser o portal para o mundo. Traz muitas oportunidades, mas também vários riscos existenciais”.
E um dado publicado pela Quartz em 2015 corrobora essa preocupação:
Porcentagem de respostas concordando com a frase: "O Facebook é a Internet"
Nigéria 65% Indonésia 61% Índia 58% Brasil 55% EUA 5%
Não é a toa que a Comunidade Europeia ao regular a neutralidade da rede vem levantando os efeitos negativos dos planos zero-rating, assim como fez a Índia, Holanda, Chile entre outros países.
Não podemos deixar de considerar também a coleta massiva de dados promovidas pelas grandes redes sociais, com a venda das informações para fins de publicidade direcionada; e, mais, a entrega dos dados para órgãos governamentais de segurança, como é o caso da Agência Nacional de Segurança do EUA.
A prática do zero-rating, portanto, tem potencializado os efeitos negativos das redes sociais e representado um limite para o acesso a outros serviços públicos, de modo que deve ser regulada de forma muito incisiva, a fim de que possamos preservar a internet, livre, inclusiva e democrática, voltada para o desenvolvimento econômico, social e cultural.
Seguem abaixo links para artigos a respeito do tema:
Revista Politics 21 – Agosto de 2015
Zero-rating: uma introdução ao debate - Pedro Ramos Zero-rating, planos de serviço limitados e o direito de acesso à internet - Flávia Lefèvre
Programas de Gratuidade no acesso à internet: Conceitos, controvérsias e Indefinições - Vinícios W.O. Santos, Diego R. Canabarro, Nathalia Sautchuk Patricio e Juliano Cappi