30 de junho de 2020
Diante do acúmulo de discussões a nível mundial e mesmo no Brasil a respeito dos possíveis caminhos para o enfrentamento dos processos de desinformação, difusão de discursos de ódio entre outros ilícitos que acontecem na Internet, são inconcebíveis os termos da proposta de lei que está em vias de ir à votação hoje – 30 de junho de 2020 – no Senado Federal.
Primeiro porque, como tem sido repetido à exaustão por várias instituições da maior respeitabilidade, como é o caso do Ministério Público Federal e do Comitê Gestor da Internet no Brasil, bem como de dezenas de entidades da sociedade civil representativas do terceiro setor e do setor empresarial, o PL 2630 está sem respaldo de um debate qualificado e aprofundado, especialmente em virtude do momento em que vivemos; no meio de uma pandemia, com o Congresso funcionando virtualmente, sem a instalação das comissões temáticas, o que seria imprescindível para que se pudesse conferir consistência à esta proposta de lei, com a ampliação dos debates a respeito dos diversos aspectos potencialmente afetados. Vale destacar que as propostas e emendas em torno do PL estão em debate há menos de dois meses.
O PL se propõe à hercúlea tarefa de regular a Liberdade, a Responsabilidade e Transparência na Internet, com o objetivo de enfrentar o problema da desinformação e dos discursos de ódio. Porém, enfrentar estes problemas implica no tratamento de questões de alta complexidade, como é o caso da transparência sobre os sistemas algorítmicos de moderação, recomendação, impulsionamento e remoção de conteúdos e contas utilizados pelas empresas que operam as plataformas de redes sociais e buscadores na Internet; aspectos relativos à responsabilização por conteúdos e sua difusão na Internet; as repercussões da possível legislação sobre outras leis, como é o caso do Marco Civil da Internet, da Lei Eleitoral e da recém aprovada e ainda sem vigorar Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais; ponderações sobre o poder de mercado das plataformas que atuam como monopólios globais na Internet, entre outras.
Aprovar a proposta de lei com base no último Relatório apresentado pelo Senador Angelo Coronel sem aprofundar as perspectivas e sem promover um estudo de impacto regulatório revela uma enorme irresponsabilidade movida pelo sentimento persecutório de vingança dos parlamentares que se sentem atacados nas redes sociais – as vezes com razão e em outras sem.
Porém, quem tem sofrido mais ataques que decorrem do mau uso que milícias virtuais têm feito do enorme poder de controlar o fluxo de informações das plataformas dominantes, com base em financiamentos ilegais, como tem apontado o Supremo Tribunal Federal, no âmbito do chamado Inquérito das Fake News, é a sociedade brasileira e as instituições democráticas assentadas em garantias fundamentais estabelecidas na nossa Constituição Federal.
Somos todos colocados em situação de suspeição e vulnerabilidade
Exemplo claro dessa violação, é a previsão contida no art. 10 do PL no sentido de que “os serviços de mensageria privada devem guardar os registros dos envios de mensagens veiculadas em encaminhamentos em massa, pelo prazo de 3 (três) meses, resguardada a privacidade do conteúdo das mensagens”.
Poucas vezes assisti a uma irresponsabilidade tão grande, pois revela desconhecimento e descompromisso com o interesse público e com a segurança de milhões de brasileiros que passarão a ser rastreados sistematicamente.
Isto porque o PL considera “encaminhamento em massa o envio de uma mesma mensagem por mais de cinco usuários, em intervalo de até 15 dias, para grupos de conversas, listas de transmissão ou mecanismos similares de agrupamento de múltiplos destinatários”. Ainda que no § 4º, exista a previsão de que a guarda dos registros não se aplica para mensagens que não alcancem menos de 1000 usuários, o certo é que é muito comum que se faça uso dos serviços de mensagem justamente para divulgar ideias que não necessariamente são maliciosas. Aliás, segundo informação do WhatsApp, menos de 1% das mensagens enviadas poderiam ser consideradas envios maliciosos ou ilícitos.
Por exemplo, eu quando escrevo um post ou tenho um post da Coalizão Direitos na Rede (CDR) envio o link para diversas pessoas da minha lista, que, por sua vez enviam para outras pessoas e entidades. Só na CDR temos 39 entidades, com diversas pessoas em cada uma delas e as entidades, por sua vez, têm associados que recebem mensagens. Sendo assim é fácil que num prazo de até 15 dias a mensagem chegue a mais de 1000 (da onde será que tiraram esse número?) usuários. Nesse caso, isso seria um indício razoável de ilicitude a justificar que todo mundo passe a ser rastreado?
Ou seja, mais de 120 milhões de usuários das principais plataformas nas quais têm ocorrido as campanhas de desinformação, passaremos a ser monitorados, independente de suspeitas, pois, vamos convir, que a mesma mensagem ter sido encaminhada por mais de 5 usuários num intervalo de até 15 dias, significa submeter a priori milhões de brasileiros à condição de suspeitos, bem como viabilizar o rastreamento de mais outros milhões acirrando o quem tem sido uma das maiores causas de fraudes na Internet no Brasil e no mundo – o vazamento ou uso indevido de dados pessoais.
Amplia o poder das plataformas quanto ao controle sobre o fluxo de informações
Além disso, no parágrafo 4º do art. 12 do PL, foram incluídas hipóteses em que o provedor de aplicações poderá adotar medidas imediatas de remoção de conteúdos quando, AO JUÍZO DA PLATAFORMA, se verificar: I - dano imediato de difícil reparação; II - segurança da informação ou do usuário; III - grave comprometimento da usabilidade da aplicação; IV - incitação à violência contra pessoa ou grupo, especialmente em razão de sua raça, gênero, orientação sexual, origem ou religião; V - indução a erro, engano ou confusão com a realidade pelo uso de conteúdo de áudio, vídeo ou imagem deliberadamente alterado ou fabricado, especialmente acerca da identidade de candidato a cargo público, ressalvados o ânimo humorístico ou de paródia”.
Não discordo de que haverá situações em que a remoção imediata se fará necessária. Porém, além de nossa legislação atual já trazer hipóteses em que a remoção imediata por notificação do interessado é cabível, a fixação de novas hipóteses deve ser feita com muita reflexão e com base em procedimentos de constante revisão promovida de forma democrática, com base em mecanismos de controle social, sob pena de estarmos institucionalizando a censura pelas mãos de empresas privadas, sendo que as dominantes e mais poderosas são americanas e com estreita relação com a agência de segurança dos EUA.
É inadmissível que os apressados e oportunistas ataquem quem faz o alerta da necessidade de cautela para a regulação da Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, pretendendo reduzir as reflexões que criticam a proposta de lei incontestavelmente açodada, “a uma preocupação egoísta e fútil com a privacidade”.
O problema não é este; é ignorar-se que a proposta de lei ataca muito mais do que a privacidade; ela ataca garantias constitucionais de preservação da intimidade, da presunção da inocência, da liberdade de expressão e da vedação à censura.
Os apressados e oportunistas se acomodam, resvalando na má fé, e deixam de cobrar das instituições como os Tribunais Eleitorais, a polícia e outros órgãos públicos, que atuem no sentido de aplicar as leis existentes de modo a fortalecer nosso ordenamento jurídico.
E, nesse caminho, preferem penalizar milhões de usuários dos serviços prestados na Internet, acirrando nossas vulnerabilidades, do que cobrar aperfeiçoamento e eficiência nas investigações e punibilidade dos reais responsáveis.
Ainda que o PL traga a previsão de mecanismos de transparência para as práticas de gerenciamento de conteúdos pelos provedores de aplicação e de devido processo para que os usuários possam se defender dos efeitos destas práticas, aprovação da lei no estado em que se encontra nos levará ao caos, pois desorganiza princípios de governança da Internet assentados internacionalmente, além de abrir uma via larga para o vigilantismo arbitrário, de ampliar os conflitos entre usuários e provedores de aplicações na Internet, de restringir direitos e liberdades e, ainda, não resolverá o problema da desinformação.
A posição da Coalizão Direitos na Rede Por fim, deixo aqui o link com o posicionamento da Coalizão Direitos na Rede, que congrega 40 entidades da sociedade civil que tratam de direitos fundamentais, direitos da comunicação e do consumidor a respeito do último relatório do Senador Angelo Coronel apresentado na véspera da votação de hoje