O STF e o Facebook - O Inquérito 4.781-DF

O STF e o Facebook - O Inquérito 4.781-DF

7 de agosto de 2020

Jurisdição e limites territoriais estão intrinsecamente relacionados tendo em vista aspectos legais e de geopolítica, como podemos concluir por disposições constitucionais que estabelecem os princípios que regem as relações internacionais (art. 4º), bem como o âmbito de incidência da atuação dos órgãos do Poder Judiciário (arts. 92 e seguintes) e das leis editadas pelas unidades da federação brasileira.

Porém, o caráter transfronteiriço da Internet e sua arquitetura aberta que a configura como uma rede de redes unindo usuários independente do país em que se encontrem, que são justamente as características que a elevaram a um dos recursos tecnológicos da humanidade com maior capacidade de transformação para ampliar os processos comunicacionais, expandindo as possibilidades de exercício da liberdade de expressão e direitos políticos, estressam os conceitos jurídicos que estabelecem limites para a jurisdição, criando tensões que chegam a toda hora nos tribunais.

As tensões aumentam por conta do poder de mercado de poucas e poderosas empresas que integram grupos econômicos transnacionais, que atuam como monopólios globais prestando serviços na Internet, com o controle nunca visto sobre os dados pessoais e os fluxos informacionais, especialmente em virtude dos bilhões de usuários que aderem às suas plataformas, ganhando contornos que ignoram as fronteiras territoriais e políticas dos países.

A necessidade de se chegar a consensos entre os países para lidar com perplexidades decorrentes do caráter transfronteiriço da Internet em contraposição às jurisdições nacionais em causas criminais, bem como as que envolvem a transferência de dados pessoais, vem inspirando centenas de estudo e criação de esforços multissetoriais como o surgimento de iniciativas como o Internet & Jurisdiction Policy Network, que congrega representantes de governos, empresas e entidades representativas da academia e terceiro setor de mais de 50 países, apoiado inclusive pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

Mas apesar desses desafios que a Internet nos apresenta, há patamares legais e definidos de jurisdição quanto à exploração da atividade econômica pelas empresas estrangeiras com atuação global como provedoras de aplicações, como está expresso nos arts. 170 e seguintes da Constituição Federal, valendo ressaltar o art. 174 que impõe aos agentes econômicos o reconhecimento do papel do Estado brasileiro como agente normativo e regulador da atividade econômica, de modo que os poderes públicos, entre eles o Poder Judiciário, possam na forma da lei, exercer as funções de fiscalização, incentivo e planejamento não só para o setor público mas também para o setor privado.

Sendo assim, as empresas estrangeiras provedoras de serviços na Internet, que atuem no país explorando atividades econômicas, devem se submeter aos termos da Constituição Federal (CF), do Código de Defesa do Consumidor (CDC) e do Marco Civil da Internet (MCI), assim como de leis específicas como a Lei Eleitoral, Estatuto da Criança e Adolescente entre outras.

Destaco que o CDC e o MCI trazem disposições expressas nesse sentido. O CDC conceitua fornecedor como “toda pessoa física ou jurídica, nacional ou estrangeira bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços” e impõe responsabilidade a todos que atuem no mercado.

Também o MCI, além de expressamente remeter para o CDC ao tratar dos princípios que regem a Internet e dos direitos dos usuários, indicando que as duas leis devem ser interpretadas e aplicadas de forma sistemática, também estabelece que “em qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros ..., mesmo que atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público brasileiro ou pelo menos uma integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil”.

Ambas as leis também indicam que na aplicação de seus dispositivos devem-se respeitar os tratados internacionais devidamente internalizados pelos processos legislativos nacionais. Sendo assim, a lei brasileira só não será aplicada para as empresas estrangeiras que atuam no país quando houver tratados internacionais assinados pelo país que excluam para determinados aspectos a incidência da jurisdição nacional.

É o caso, por exemplo, do Decreto 3.810/2001, que internalizou o acordo firmado entre Brasil e Estados Unidos da América, promulgando o “Acordo de Assistência Judiciária em Matéria Penal” entre os dois governos, conhecido como MLAT - Mutual Legal Assistance Treaty.

É certo que, mesmo havendo o acordo devidamente assinado entre os países, há discussões a respeito da aplicabilidade de seus termos, por conta das previsões estabelecidas pelo MCI que transcrevi acima, por ser lei posterior ao Decreto 3.810/2001, o que tem gerado conflitos entre as empresas americanas e autoridades brasileiras de investigação como o Ministério Público e as polícias.

E esta discussão já chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) por meio da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 51, movida pela Federação das Associações das Empresas de Tecnologia da Informação – ASSESPRO, onde se discutem aspectos como o acesso a informações sobre usuários por provedores de serviços da Internet que mantenham suas bases de dados no exterior, soberania nacional, conflitos entre a lei brasileira e a lei americana sobre compartilhamento de informações controladas por empresas americanas, entre outros tanto quanto desafiadores.

O Inquérito 4781 / DF no STF

Feito esse brevíssimo resumo, com o objetivo de demonstrar algumas das perplexidades decorrentes do caráter transfronteiriço da Internet, quero trazer um debate recente ocorrido por conta de uma decisão proferida pelo Ministro Alexandre de Moraes do STF, no Inquérito 4781, sobre o qual pairam uma série de questionamentos quanto à sua legalidade, em virtude de ter sido instaurado diretamente pela Corte Suprema, independentemente da atuação do Procuradoria Geral da República, para apurar ataques ao próprio tribunal e seus ministros. Mas, neste momento, vou deixar de tratar desses embates, embora tenha entendimento a este respeito. Questionar a legalidade do inquérito nesta altura perde a relevância na medida em que o STF já apreciou os recursos questionando a legalidade do inquérito e ela foi mantida.

Agora é importante refletir sobre a resistência do Twitter e do Facebook para cumprir uma decisão proferida pelo STF. E, nesse caso, entendo que a postura das empresas é absolutamente injustificada, pois se caracteriza como desrespeito às leis nacionais, indiscutivelmente aplicáveis a estas empresas, apesar de elas afirmarem que estaria havendo excesso dos limites jurisdicionais por parte do STF, a ponto de afirmarem inicialmente que não iriam cumprir a ordem judicial. Mas depois voltaram atrás. Vejam o que disse o Ministro Alexandre de Moraes diante da resistência das empresas:

Irretocável a decisão do Ministro, na medida em que ele deixa claro que os efeitos de sua decisão incidem para usuários com acesso a Internet por IPs localizados no país, sendo que os sistemas e tecnologia utilizados pelas empresas são aptos a fazer esse corte.

Incoerência das plataformas

Portanto, a resistência das empresas é ilegal e injustificada, pois a decisão do Ministro do STF não extrapola os limites da jurisdição brasileira, ainda que as contas dos investigados tenham sido criadas por endereços IPs administrados por outros países. Além disso, revela incoerência. Isto porque, as manifestações do Facebook e das plataformas em geral, para justificar remoções e reduções de alcance de conteúdos questionáveis têm sido no sentido de que os padrões da comunidade são definidos com o objetivo de impedir posturas maliciosas. Vejam só:

Nossos Padrões da Comunidade se aplicam a todos, no mundo inteiro, e a todos os tipos de conteúdo. Eles foram concebidos para que fossem abrangentes. Por exemplo, o conteúdo que talvez não seja considerado discurso de ódio ainda pode ser removido por violação de uma política diferente. Reconhecemos que as palavras têm diferentes significados ou afetam as pessoas de maneiras diversas dependendo da comunidade local, idioma ou origem. Trabalhamos com muito empenho para representar essas nuances e procuramos aplicar nossas políticas de forma consistente e justa às pessoas e expressões individuais. No caso de certas políticas, solicitamos mais informações e/ou contexto para reforçar o cumprimento de nossos Padrões da Comunidade.

Sendo assim, a resistência em suspender as contas dos investigados sob o falacioso argumento de que a decisão judicial extrapola o âmbito de jurisdição do Brasil, sendo que afirma que suas políticas se aplicam "no mundo inteiro" revela uma postura errática. Se afirmam que possuem Termos de Serviço, políticas, regras e mecanismos para lidar com o uso abusivo e ilícito de suas plataformas, havendo ordem judicial proferida diante de práticas ilegais, notórias e reiteradas, qual a justificativa para resistirem a suspender as contas indicadas pelo Ministro, não só aqui, mas também em outros países?

Arrisco aqui algumas respostas; seria porque estas contas geram ganhos pela polarização que suscitam, ou porque acreditam que essas empresas entendem que possuem alguma espécie de “soberania” que possa se sobrepor à legislação brasileira? Seja qual for a resposta, o fato é que a resistência é descabida e soa como desrespeito à ordem jurídica nacional e, portanto, deve mesmo ser repreendida, nos termos do que decidiu o Ministro.

As consequências para a sociedade brasileira da manutenção das contas daqueles que fazem um uso ilegal e abusivo das redes e do direito de liberdade de expressão são gravíssimas e vêm corroendo as instituições democráticas brasileiras; os resultados podem ser constatados com os processos de desinformação na rede que se iniciaram nas plataformas da Internet no Brasil desde 2016.

Portanto, se as empresas pretendem contrariar as ordens judiciais das cortes brasileiras, deveriam reavaliar a decisão de permanecer no país, colhendo e se enriquecendo com nossos dados pessoais, sem oferecer as devidas contrapartidas, nos termos do que determinam a Constituição Federal ao tratar da exploração da atividade econômica, o Código de Defesa do Consumidor, quando estabelece a Política Nacional das Relações de Consumo e o Marco Civil da Internet, que orientam no sentido de que a disciplina do uso da Internet no Brasil, inclusive pelos provedores de aplicações é óbvio, tem como fundamentos os direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais; a pluralidade e a diversidade; a finalidade social da rede; a garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento; preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas; responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei.

As discussões em torno de propostas legislativas para regular os provedores de serviços na Internet aqui e no mundo são a prova de que todos esses valores andam ameaçados por ataques tanto pelos investigados no inquérito 4781, quanto pela atitude prepotente, neste caso, dos grupos econômicos globais.

Por essas e por outras é que acreditamos na importância de ampliar os debates sobre o PL 2630/2020, já aprovado no Senado e tramitando agora na Câmara Federal, que se pretende a definir regras para a Liberdade, Transparência e Responsabilidade na Internet.

Aqui o acesso às duas decisões do Ministro Alexandre de Moraes – a de 28 e a de 31 de julho de 2020

Aqui matéria no Jornal Brasil de Fato quando conversei com o Glauco Faria sobre esse tema - "Não há justificativa para Facebook descumprir ordem judicial e manter perfis maliciosos"