Eleições 2018 e Internet – As ameaças à liberdade de expressão
Venho compartilhar aqui as reflexões que fiz ao ser convidada pelo Instituto Igarapé para fazer um debate multissetorial a respeito do processo eleitoral de 2018, no dia 12 de dezembro de 2017, no Rio de Janeiro.
Como muito bem salientado pelo texto que me foi enviado pelo Instituto Igarapé, “estamos vivendo um horizonte legal incerto que se coloca diante da sociedade conforme nos aproximamos das eleições de 2018”.
Nesse cenário de incertezas, antes de qualquer coisa, gostaria de deixar claro que vejo como um equívoco gigantesco, em nome de defender a democracia, centrarmos o foco dos debates quanto ao processo eleitoral de 2018 nas chamadas “fake news".
Isto porque mentiras, discursos enviesados por interesses políticos privados, uso do poder econômico e discursos de ódio em cenários eleitorais sempre aconteceram. A novidade é o alcance e a rapidez enormes com que as notícias, ideias e ataques se propagam com o uso de novas tecnologias na Internet.
O próprio debate que já se instaurou em nome de um processo eleitoral ético em 2018, focado em torno das chamadas “fake news” ou notícias de baixa qualidade, respaldam minhas preocupações. Mas os desafios colocados pelo cenário político não se encerram aí; este é um dos muitos problemas que teremos de enfrentar em defesa da democracia.
O que temos de certo é que não conseguiremos conter a mentira e precisamos encontrar um caminho legítimo, legal e objetivamente eficaz para lidar com as situações de exercício abusivo das garantias constitucionais de liberdade de expressão e liberdade política, sem comprometer estes direitos e o caráter aberto das redes.
Proponho, então, algumas perguntas para orientar quais devem ser nossas preocupações, se de fato pretendemos garantir uma dose mínima de democracia no processo eleitoral de 2018:
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Temos hoje algum grau satisfatório e suficiente de governança ou transparência sobre os algoritmos utilizados pelas plataformas monopolistas de aplicações para filtrar o que sejam notícias de baixa qualidade, ou ainda sobre os critérios para disponibilização de notícias por perfil ou mecanismos de buscas?
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Os nossos direitos à privacidade e à informação livre estão garantidos diante do poder dos algoritmos de formar perfis coletando massivamente nossos dados pessoais e direcionando as informações que acessamos pela Internet?
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Como serão utilizados nossos dados num contexto de ausência de lei de proteção de dados pessoais no Brasil?
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Qual a extensão do art. 5º, inc. IV, da CF, que proíbe o anonimato e como interpretar este dispositivo com outros que protegem a liberdade de expressão e a privacidade?
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Quais são as conexões entre as grandes plataformas e empresas que atuam com a verificação da qualidade de notícias e com estatísticas eleitorais e os governos?
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O que é considerado fake news, ou ainda, quem ou qual algoritmo tem o poder de determinar que certa notícia é ou não falsa ou de baixa qualidade?
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Vamos demonizar a utilização de bots em qualquer circunstância?
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As plataformas de provimento de acesso e de aplicações possuem mecanismos de identificação de uso indevido de bots? Como se dará o regime de responsabilidade das plataformas diante do sua capacidade de amplificar a propagação de notícias falsas e pela utilização abusiva de dados pessoais?
Essas são uma amostra de questionamentos que revelam a complexidade do cenário e as dificuldades que iremos enfrentar.
E diante de situações que promovem alta complexidade e perplexidades, como é o cenário de eleições polarizado como está e o potencial das novas tecnologias no que diz respeito a identificação de perfis, com efeitos decisivos na coleta e utilização de dados pessoais e manipulação de informações, devemos nos voltar para os princípios que protegem direitos humanos fundamentais, como a privacidade, o direito a livre a informação, a liberdade de expressão e a liberdade política.
Foi com esse foco que o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) manifestou-se publicamente em diversas circunstâncias: na época da CPI do Cibercrime, das iniciativas de criar um cadastro para navegação na Internet e da última alteração da lei eleitoral, editada no último dia 6 de outubro deste ano (Lei 13.488/2017). Segue a relação das Notas Públicas:
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Nota de esclarecimento em razão do Relatório da CPI – Crimes Cibernéticos, divulgado no dia 30 de março de 2016
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Nota Pública sobre a aprovação do PLC 110/2017 na Câmara dos Deputados e no Senado Federal
Todas as iniciativas legislativas com relação às quais o CGI.br se pronunciou apresentavam justificativas nobres para tolher direitos fundamentais como a liberdade de expressão e princípios como a não responsabilização dos provedores por atos ilegais de terceiros. Foram usados a proteção de crianças e adolescentes, combate a pedofilia, ao discurso de ódio, fraudes bancárias, segurança entre outras.
Sendo assim, importante destacar o viés que o atual governo vem dando para o processo eleitoral no que diz respeito ao uso da Internet. Veja-se, por exemplo, a inclusão das forças armadas para combater fake news e discurso de ódio, contra o que a Coalizão Direitos na Rede se pronunciou publicamente, divulgando Nota Pública no VII Fórum da Internet no Brasil, ocorrido em novembro no Rio de Janeiro
Nesta nota da Coalizão foram feitas as seguintes ponderações: Em que pese as notícias falsas serem um fenômeno nocivo para a democracia e para o direito de acesso à informação, e que precisa ser combatido, inclusive no contexto de possíveis influências em processos eleitorais, atribuir ao Exército e às forças de segurança a tarefa de monitorar conteúdos na Internet é uma medida inadequada e que traz sérios riscos à liberdade da expressão dos usuários. As Forças Armadas não podem monopolizar o controle da veracidade dos fatos porque 1) não possuem essa competência constitucional; 2) não têm as condições técnicas para isso; 3) não detêm o conhecimento para distinguir fake news; e 4) não são neutras na política. Para piorar, essas instituições deixaram violentas e profundas marcas na história recente do país ao promoverem o cerceamento da liberdade de expressão e de manifestação dos brasileiros/as durante a ditadura civil-militar. O monitoramento sem uma base legal neste sentido já é uma violação da privacidade, direito garantido constitucionalmente e em leis específicas, e da proteção dos dados pessoais, princípio assegurado no Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014). Mais grave, a análise da ação de milhões de brasileiros, com a possibilidade de acessos a dados eleitorais, coloca a população brasileira como objeto de vigilância pelas FFAA e pelo sistema nacional de inteligência, algo incompatível com o regime democrático.
A despeito das ponderações contidas na Nota Pública da Coalizão, o TSE publicou Portaria, conforme notícia publicada no último dia 9 de dezembro, cujo objetivo é implementar uma “força-tarefa na Corte que vai propor medidas para conter a disseminação de notícias falsas nas eleições de 2018”, formada por dez componentes do TSE, da ABIN, do Exército, o diretor de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas, Marco Aurélio Ruediger, o membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil Maximiliano Salvadori Martinhão e o presidente da associação SaferNet Brasil, Thiago Tavares Nunes.
Essa medida foi adotada sem que o pleno do CGI.br fosse sequer consultado, desrespeitando o caráter multissetorial da governança da Internet, como estabelecido no Marco Civil (art. 24, inc. I e II), revelando que devemos nos manter alertas para o perigo da apropriação das instituições por interesses políticos privados, como vem acontecendo ultimamente.
AS EMPRESAS E OS PROCESSOS ELEITORAIS Google / IFNC / AOS FATOS Para ilustrar minhas preocupações trago a matéria publicada pela Rede Brasil Atual, em em abril deste ano informando sobre a nova política do Google quanto à “notícias de baixa qualidade”. http://www.redebrasilatual.com.br/tecnologia/o-google-comeca-a-censurar-a-divergencia “Nos últimos três meses, desde que o Google anunciou seus planos de não deixar que usuários acessem “fake news” (notícias falsas), o tráfego global de um amplo leque de organizações de esquerda, progressistas, contra a guerra ou em favor dos direitos democráticos teve queda significativa. Em 25 de abril, o Google anunciou que havia implementado mudanças em seu serviço de busca para tornar mais difícil acessar o que chamou de informação de “baixa qualidade”, um conceito que inclui as chamadas “teorias de conspiração” e “fake news”. A empresa afirmou, num post de seu blog, que o propósito central da mudança em seu algoritmo de busca era obter maior controle na identificação de conteúdo considerado duvidoso em seus manuais. Declarou que havia “melhorado nossos métodos de avaliação e atualizado os algoritmos” de modo a “evidenciar conteúdos mais autoritários”. O texto continuava: “No mês passado atualizamos nossas Diretrizes de Avaliação em Qualidade de Busca para fornecer exemplos mais detalhados de páginas de baixa qualidade na web, para que os avaliadores as denunciem adequadamente”. Esses moderadores são instruídos para sinalizar “experiências desagradáveis de usuários”, incluindo páginas que apresentem “teorias da conspiração”, a menos que “a consulta indique claramente que o usuário está buscando um ponto de vista alternativo”. O resultado desta política já impactou negativamente diversos sites de notícia, segundo publicado na matéria: O World Socialist Web Site divulgou dados que estimam a queda de 13 sites na busca do Google: Wsws: – 67% Alternet: – 63% Global Research: – 62% Consortium News: – 47% Socialist Worker.org: – 47% Media Matters: – 42% Common Dreams: – 37% International Viewpoint.org: – 36% Democracy Now: – 36% Wiikileaks: – 30% Truth Ouut: – 25% Counter Punch: 21% The Intercept: – 19%.
Aqui no Brasil, conforme divulgado pela Tecmundo, em 29 de outubro de 2017, a Google contratou a International FactCheking Network (IFNC), que por sua vez se associou à brasileira Aos Fatos, “para remover dos resultados de busca “toda e qualquer notícia que publicar dados errados ou falsificados”.
Grupo NEXXERA / MrPREDICTIONS De acordo com matéria publicada em 8/12/2017 pelo DCI, o “Grupo Nexxera quer combinar prévia eleitoral com inteligência artificial. Conhecida por prestar serviços para o mercado financeiro, empresa de Santa Catarina pretende unir análise preditiva para diminuir erros em pesquisas de mercado ou até de intenção de votos”. Nesta semana foram anunciadas a compra de 50% do MrPredictions e do Instituto MAPA, ambos também sediados em Santa Catarina. A primeira é uma empresa de tecnologia especializada em análises preditivas; já a segunda é uma tradicional player regional na elaboração de pesquisas de opinião e mercado. Valores das transações não foram divulgados, mas o desejo da Nexxera de que as duas caminhem juntas daqui para frente é explícito”. O Grupo Nexxera atua no segmento de serviços digitais com o processamento de transações eletrônicas financeiras e mercantis (a tecnologia da Nexxera está conectada a 78 bancos e 8 adquirentes). Este grupo, segundo matéria publicada na Carta Capital desta semana (ed. 982), com o título Zona de Negócios Ilícitos, que informa sobre denúncia que tramita no TCU (026.092/2017-A) envolvendo os Correios, o Ministro Kassab e o grupo Nexxera, foi contratado sem licitação para realizar serviços digitais, o que lhe proporcionará a oportunidade de coleta massiva de dados.
Como iremos nos posicionar diante da atuação das plataformas conjuntamente com essas empresas? Quais os efeitos da atuação dessas empresas com tratamento discriminado de dados? O quanto estas atividades influenciarão ou não as escolhas dos eleitores? Como será a prestação de contas sobre os valores investidos em impulsionamento de notícias?
Matéria publicada no último dia 12 de dezembro pelo El País informa os perigos das condutas adotadas pelo Facebook no sentido de influenciar resultados eleitorais: "As críticas de Palihapitiya às redes se juntam às do primeiro presidente do Facebook, Sean Parker, que criticou a forma como a empresa “explora uma vulnerabilidade da psicologia humana” criando um “ciclo de retroalimentação de validação social”. Além disso, um ex-gerente de produto da empresa, Antonio García-Martínez, acusou o Facebook de mentir sobre sua capacidade de influenciar as pessoas em função dos dados que coleta sobre elas e escreveu um livro, Chaos Monkeys, sobre seu trabalho na empresa. No último ano vem crescendo a preocupação com o poder do Facebook, seu papel nas eleições norte-americanas e sua capacidade de amplificar notícias falsas".
Tudo isso me parece muito mais relevante do que criar uma força tarefa para combater as ditas fake news, especialmente por conta de disposições contidas na Lei Eleitoral.
A LEI 9.504/1997, COM AS REVISÕES DA LEI 13.488/2017 As novas disposições da lei eleitoral relativas ao uso da Internet para campanhas políticas merecem muita atenção. Especialmente os arts. 57-C e 57-H.
Art. 57-C. É vedada a veiculação de qualquer tipo de propaganda eleitoral paga na internet, excetuado o impulsionamento de conteúdos, desde que identificado de forma inequívoca como tal e contratado exclusivamente por partidos, coligações e candidatos e seus representantes.
Art. 57-H. Sem prejuízo das demais sanções legais cabíveis, será punido, com multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 30.000,00 (trinta mil reais), quem realizar propaganda eleitoral na internet, atribuindo indevidamente sua autoria a terceiro, inclusive a candidato, partido ou coligação. (Incluído pela Lei nº 12.034, de 2009) § 1º Constitui crime a contratação direta ou indireta de grupo de pessoas com a finalidade específica de emitir mensagens ou comentários na internet para ofender a honra ou denegrir a imagem de candidato, partido ou coligação, punível com detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos e multa de R$ 15.000,00 (quinze mil reais) a R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). (Incluído pela Lei nº 12.891, de 2013) § 2º Igualmente incorrem em crime, punível com detenção de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, com alternativa de prestação de serviços à comunidade pelo mesmo período, e multa de R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a R$ 30.000,00 (trinta mil reais), as pessoas contratadas na forma do § 1º. (Incluído pela Lei nº 12.891, de 2013)
Essas disposições, propositalmente ou não, terminam por privilegiar indevidamente as grandes plataformas de aplicações, como é o caso do Facebook, na medida em que as propagandas eleitorais pagas ficam proibidas na Internet, bem como criminalizada a contratação direta ou indireta de grupo de pessoas para o envio de mensagens ou comentários na Internet para ofender a honra ou denegrir a imagem de candidato, partido ou coligação.
Importante considerarmos que a injúria, a calúnia e a difamação já estão contempladas por nosso código penal. Sendo assim, proibir e/ou criminalizar a priori a atividade de propaganda paga na Internet, com base em aspectos altamente subjetivos, põe em alto risco a liberdade política e a liberdade de expressão.
É muito comum no Brasil que políticos sintam-se ofendidos com a veiculação de notícias a respeito de processos por improbidade administrativa que os envolvem, ou ainda, com comentários a respeito de suas condutas enquanto agentes públicos, e que movam exércitos de advogados para retirar conteúdos da Internet.
Tanto é assim que quase foi aprovado dispositivo para a mesma lei eleitoral (PLC 110/2017), alterando o Marco Civil da Internet para autorizar a retirada de conteúdos independente de ordem judicial nos casod de “discurso de ódio, disseminação de informações falsas ou ofensa em desfavor de partido ou candidato, feita pelo usuário de aplicativo ou rede social na internet ...”.
Este dispositivo só não foi aprovado por conta de uma forte reação da sociedade, assim como do CGI.br.
Ou seja, a ameaça à democracia emerge muito mais por iniciativas repressoras e retrógradas, que têm o claro objetivo de proteger privilégios injustificados, do que pela mentira.
O Marco Civil da Internet aparelhou os interessados legítimos para se defenderem de condutas abusivas e para identificar e responsabilizar os responsáveis por danos, resguardando, entretanto, a análise do cabimento do pedido à atuação do Poder Judiciário.
Ou seja, já contamos com instrumentos legais para que os cidadãos, políticos e partidos defendam seus interesses, contra ataques indevidos e, portanto, devemos resistir à tentação de criminalizar condutas ou de reduzir direitos, como reação a problemas específicos e circunstanciais.
Sendo assim, é preciso que a sociedade se organize e se informe a respeito de seus direitos, a fim de exercê-los e, ao mesmo tempo, a fim de preservarmos a Internet aberta e o mais livre possível.
O ANONIMATO E A CONSTITUIÇÃO FEDERAL Por fim, temos também de refletir a respeito da importância do anonimato para o exercício de direitos políticos legítimos, diante do que dispõem os incs. IV; VIII e IX, do art. 5º, da Constituição Federal.
Há quem interprete a proibição ao anonimato no sentido de que ninguém poderia em qualquer hipótese postar conteúdos na Internet sem se identificar. Entretanto, se consideramos a garantia de liberdade de expressão e direitos políticos, a conclusão não pode ser exatamente aquela.
A utilização de perfis falsos na Internet, por exemplo, desde que manifestadas as opiniões sem abuso de direito e com respeito ao direito de terceiros não é ilegal; podemos, inclusive, fazer analogia com a utilização de pseudônimos, o que nunca foi criminalizado. Entendo que não há relação direta entre perfil falso e propagação de fake news, como vem sendo difundido nos últimos dias.
Num contexto de governos autoritários e de reação da sociedade, o anonimato se revela como uma alternativa fundamental para a defesa de direitos fundamentais e preservação da segurança e até da vida dos cidadãos.
Nas situações de uso abusivo de direito de liberdade de expressão, o anonimato pode ser quebrado, na medida em que na Internet quase tudo pode ser rastreado e o ofensor poder ser identificado.
Assim, no caso de uso abusivo de um perfil falso, o ofendido poderá apelar para o Poder Judiciário, tanto para retirar o conteúdo da Internet, quanto para identificar e responsabilizar o ofensor.
Enfim, a mensagem que acho importante deixar por aqui é que as fake news são um entre diversos desafios que colocam em risco a democracia no processo eleitoral de 2018.
Envolver o Exército e a Abin para coibir as fake news é não só inadequado, como também pode nos afastar de adotar providências que protejam todos os outros direitos que se revelam hoje gravemente ameaçados, como as liberdades de expressão, de livre informação e políticas.