O assunto da franquia de dados nos planos de acesso a Internet continua fervilhando justificadamente. Estamos falando de um serviço – a conexão a Internet, que é essencial para o exercício da cidadania e, consequentemente, é um serviço universal, por disposição legal – arts. 4º e 7º, do Marco Civil da Internet.
Sendo assim, é difícil sustentar que a empresa que presta esse serviço estabeleça seu planos de negócio num modelo em que no dia 10 do mês contratual a parca quantidade de dados contratados pelos consumidores de mais baixa renda acabe e o exercício de seus direitos fique suspenso até que eles encontrem uma rede wi-fi ou que o mês contratual se inicie e ele volte a ter dados disponíveis.
Esse problema é complexo e envolve muitos aspectos: investimento em infraestrutura de telecomunicações; alto custo tributário que incide em serviços essenciais; inoperância dos órgãos públicos atribuídos do papel de zelarem por direitos duramente conquistados pela sociedade como a neutralidade da rede e concentração e monopólio de serviços de telecomunicações e conexão a Internet, associados ao poder infernal e planetário das plataformas como Facebook e WhatsApp (ambas do mesmo grupo econômico), controlando o fluxo de informações.
É inacreditável que as autoridades e quem atua no campo das comunicações não relacione esses aspectos, especialmente depois da tragédia das eleições de 2018 no país, e abdiquem da responsabilidade social, deixando milhões de brasileiros sujeitos ao poder econômico de empresas que atuam com pouco (ou nenhum) compromisso com o interesse público.
Foi sobre tudo isso a minha conversa com o Sérgio Amadeu da Silveira num podcast de uma série no Tecnopolítica
E como esse assunto muito me interessa, me chamou a atenção um artigo publicado no Teletime no último dia 19, com o título a “Arapuca do senso comum” de autoria do Samuel Possebom. Fiquei estarrecida com o corte parcial e excludente que o articulista fez, deixando de considerar aspectos que, para mim, quando falamos desse tema das franquias no acesso a Internet, não podem ser ignorados.
Comentei com um amigo, com quem constantemente choro minhas lamúrias sobre esse ambiente regulatório louco que enfrentamos nos campo das telecomunicações e governança da Internet, e acho que ele também se sensibilizou e me presenteou com um texto SENSACIONAL! Ele não queria que eu divulgasse ... mas insisti, pois minhas falas sobre esse tema são cheias de referências legais e muito sérios, como podem ver pelos diversos posts que já fiz aqui sobre o tema e que volto a convidar a quem possa interessar a visitar ao final.
O texto do meu amigo lança a discussão do tema para cima, para o lugar que ele deve ocupar – o espaço do absurdo e da comédia ... afinal, nesses tempos de governo Bolsonaro, precisamos muito rir ...
FEBEAPÁ 4G
Sérgio Porto teria que montar uma redação inteira para dar conta das besteiras que assolam o País atualmente. A tsunami de bobagens aportou agora nas telecomunicações.
No mundo das telecomunicações brasileiras, as coisas andam muito doidas. Ou seja, completamente em linha com a nova situação do País. Certo noticiário especializado resolveu sair em defesa das pobres empresas de telecomunicações aportadas em solo tupiniquim. Porque todos sabem, né, elas precisam de ajuda. São muito frágeis e se não forem defendidas desses consumidores neandertais fica difícil prestar um bom serviço a esses ingratos.
Pois bem, as chagas escolhidas para serem curadas por um certo intrépido articulista é a franquia de dados no uso da Internet e os bloqueadores de celular. Mais à frente veremos que a seleção é, no mínimo, curiosa pois trás em si uma contradição tremenda na lógica (?) escolhida para a argumentação.
Segundo o Dom Quixote, esse negócio de o consumidor comprar Internet pela velocidade e usa-la à vontade para suas navegações já deu. As teles estão cansadas, minha gente. Negócio bom – e justo, na visão do cavalheiro – é a empresa te vender um pacotinho virtual com um número X de dados consumíveis e, quando você usar tudo, ela cortar sua Internet, ou te deixar acessar apenas Facebook e WhatsApp. Tá na hora de botar todo mundo na dieta de dados porque as teles já se encheram dessa brincadeira de prestar serviço para esses glutões brasileiros.
Até dá pra entender parte do raciocínio dessa turma control freak: outros serviços básicos, como água e luz, são vendidos por volume de consumo. Só tem um probleminha aí: água e luz, o consumidor tem absoluta consciência do seu consumo e, em caso de uso acima de suas capacidades financeiras, trata de controlar o uso. Agora me digam: vocês sabem quanto pesam as páginas que vocês acessam? Quanto pesa ouvir os áudios do imbróglio Bebianno X Bolsonaro? Tem como economizar? Ou a propaganda que rola na sua página do Facebook sem você ter qualquer controle sobre esse tráfego?
O absurdo do paralelo é tão gritante que até a nossa Justiça – que não é íntima dos meandros da modernidade digital – entendeu que a venda por franquia é um abuso e proibiu liminarmente o bloqueio do serviço após o limite ser ultrapassado, em 2015. A liminar caiu depois, mas a Anatel, para não passar vergonha demais, ressuscitou a proibição, que perdura até hoje. Ainda assim, o glorioso defensor das pobres e oprimidas teles não desiste: “Mas é direito do consumidor consumir o quanto ele quiser, sem limites? Esta é a questão.” Não, caro colega, não é essa a questão.
O intrigante artigo começa com a seguinte frase. “Aplicar o senso comum nem sempre é o melhor caminho quando se pensa em políticas públicas ou ações regulatórias.” (Não) Sinto discordar. O senso comum pode orientar excelentes políticas públicas e ações regulatórias. Porque o senso comum exprime a expectativa mais básica da sociedade sobre determinado aspecto da experiência coletiva.
Estava vendo a excelente série de ficção científica The Expanse. Na história futurista a humanidade rompeu as barreiras terráqueas e colonizou o Sistema Solar. Licença poética aparte – que todas essas séries usam e abusam para justificar as imprecisões científicas –, chama atenção na narrativa o uso exaustivo de celulares e da Internet como ferramentas absolutamente prosaicas no cotidiano dos personagens. Essa é a expectativa da sociedade real, caro jornalista. Esse é o senso comum. De que, no futuro, a Internet seja algo absolutamente banal e extraordinariamente necessário para todas as atividades humanas. E já que estamos no Festival de Besteira que Assola o País, lanço sem vergonha o clichê: “E o futuro começa agora, meu filho!”.
Por que raios mirar um futuro em que o uso da Internet seja ilimitado, justamente por ser essencial, como aliás está expresso no Marco Civil da Internet, é uma má política pública? Será que política pública no vocabulário dos que acompanham o setor de telecomunicações tem outro significado? Provavelmente “política de ajuda às empresas privadas prestarem serviços sem terem que investir um centavo”? Deve ser isso.
Políticas públicas devem mirar alto. Fixar como meta o melhor possível para o futuro de um país. Sim, dar também condições econômicas para que os setores atinjam essa meta. Mas aí é outra parte da história. Meta de política pública deve atender a esse consumidor abusado que tanto chateia o dedicado articulista. E não a empresa que, nos gloriosos tempos de vigência da franquia, reduzia a velocidade de banda para menos de 64 kbps, velocidade em que nem voz passa. Para consumidores neandertais, uma Banda Paleolítica.
A previsão é que a combalida Oi tenha tido lucro líquido de R$ 27,95 bilhões em 2018 – e o mercado chora lágrimas de sangue com esse resultado terrível. A Telefônica Brasil lucrou R$ 8,9 bilhões e esse lucrinho aumentou em 160% no último trimestre. O da TIM cresceu 26% e fechou o ano passado em R$ 1,5 bilhão. Fico aqui me perguntando como podem esses consumidores vis gerarem lucros tão módicos para empresas tão humildes. Esses consumidores precisam mesmo de um limite. Chega de atrapalharem as teles! Já pensou quanto mais elas lucrariam se pudessem bloquear esses abusados e cobrar o que quisessem para recolocados na web? Ai sim teríamos lucros dignos para as pobres empresas que se matam para ofertar uma bandinha larguinha para esses ingratos.
Por fim, mas não menos importante, nosso Quixote se atrapalha na luta com os moinhos e reclama que as teles não têm como criar zonas sem sinal nos presídios. Esse é um debate complexo porque é difícil executar a tarefa sem prejudicar a população que mora perto das carceragens. Mas você acha que é por isso que o cavaleiro andante critica as diretivas governamentais para anular os sinais nos presídios? Não, caro leitor. O que o articulista mais se preocupa é que executar a tarefa “torna o sistema de telecomunicações como um todo como alvo do crime organizado (sic)”. Stanislaw já pode abrir a Editoria de Telecom com esse FEBEAPÁ 4G. É sério isso? As teles não podem investir em tecnologia para colaborar na solução de um problema público porque temem virar alvo do PCC? É até difícil argumentar contra uma preocupação tão exótica.
A ironia final do artigo é que a dupla problemática levantada pelas teles que possuíram o nobre jornalista contém uma simetria quase perfeita: não dá pra bloquear presídios; tem que bloquear consumidores. É uma coisa sensacional. Tenho que admitir que, se as teles conseguirem a franquia limitada de volta, talvez resolva o problema dos presídios, pelo menos por metade do mês, se a grana dos meliantes estiver curta. Senso comum é bom, caro jornalista. Bom senso é ainda melhor.
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