22 de junho de 2024
O Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI), da Fundação Getúlio Vargas Direito de São Paulo, junto com o Capítulo Brasil da Internet Society (ISOC) realizaram a pesquisa “Soberania Digital: Para quê e para quem? Análise conceitual e política do conceito a partir do contexto brasileiro”, e o Curso Livre “Soberania digital: Conceitos, perspectivas e impactos para a Internet no Brasil”, coordenados pelas amigas Ana Paula Camelo, Ana Carolina Rodrigues e Beatriz Yuriko Schimitt Katano.
Tive a honra de apresentar a Aula 1, disponível no canal do CEPI FGV Direito SP no YouTube e contribuí com texto para a publicação com artigos abordando diversos aspectos sobre o tema, que podem ser acessados no Blog Soberania Digital no Medium.
Segue abaixo o texto publicado, com reflexões que indicam a necessidade de o Brasil definir uma Estratégia Nacional para a Soberania Digital.
Tratar da soberania digital implica levar em conta aspectos legais, políticos e técnicos, mas as reflexões que faremos a seguir vão se restringir aos dois primeiros, partindo da perspectiva de que, antes de tudo, quando falamos de soberania é necessário ter presente que ela está entre os fundamentos da República do Brasil (art. 1º, I, da Constituição Federal); entre os direitos fundamentais, segundo as previsões sobre a concessão de mandado de injunção “sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania” (art. 5º, LXXI); quando se assegura o direito à cidadania e ao voto como manifestação da soberania popular (art. 14).
A soberania também é vista como um princípio da ordem econômica, por meio da previsão expressa sobre o poder do Estado como agente normativo, regulador e fiscalizador da atuação das empresas, sejam elas públicas ou privadas, nacionais ou estrangeiras (arts. 170, I, e 174). O conceito e o exercício da soberania em suas diversas vertentes estão diretamente imbricados com o conceito de jurisdição, envolvendo aspectos territoriais e de geopolítica.
As disposições constitucionais mencionadas e outras estabelecem os princípios que regem as relações internacionais, o exercício de direitos políticos, bem como o âmbito de incidência da atuação dos órgãos dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, do modo como estão conformados pelo nosso ordenamento jurídico. Essa configuração torna imperativo, quando falamos de soberania digital e tecnológica, levar em conta o respeito ao Código de Defesa do Consumidor (CDC), ao Marco Civil da Internet (MCI), à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), ao Código Civil (CC), ao Código Penal (CP), ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), às normas que compõem o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, entre outras tantas.
Nessa esteira, o desafio é dar consequência ao que dispõem as leis nacionais, diante do caráter transfronteiriço da Internet e de sua arquitetura aberta, que a configura como uma rede de redes unindo usuários, independentemente do país em que se encontrem. São essas, justamente, as características que a elevaram a um dos recursos da humanidade com maior capacidade de transformação para ampliar os processos comunicacionais, expandindo as possibilidades de exercício da liberdade de expressão, dos direitos políticos e da democracia.
O alcance de bilhões de usuários em diversos mercados ao mesmo tempo torna a Internet um ambiente altamente disputado por agentes econômicos e políticos, em busca de lucro, de controle e de poder. Assim, a exploração de atividades econômicas e a Administração Pública terminam por estressar os conceitos de jurisdição e soberania, como consequência das perplexidades para aplicação da legislação nacional sobre empresas dominantes estrangeiras e sobre órgãos e agentes públicos, criando tensões que chegam a toda hora aos tribunais levando questionamentos a respeito do exercício do poder regulador e sancionatório dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
As tensões aumentam por conta do poder de mercado de poucas e poderosas empresas que integram grupos econômicos transnacionais, sendo as cinco maiores bigtechs estadunidenses[1] e atuando como oligopólios globais. Essas organizações se apropriam, por meio de aquisições societárias, de pesquisas e inovações nacionais e prestam serviços na Internet, com poder de controle nunca visto sobre os fluxos informacionais, bem como sobre dados pessoais de alto interesse público, pois essenciais para a atuação estatal voltada para o desenvolvimento de políticas públicas. O problema se agrava diante do volume de usuários que aderem às suas plataformas em todo o planeta — são mais de 2,8 bilhões para cada uma das plataformas da Meta e Alphabet, por exemplo. A situação ganha contornos que ignoram as fronteiras territoriais, legislativas e políticas dos diversos países.
São esses alguns dos aspectos políticos que nos colocam na perspectiva do conceito de colonialidade como proposto pela Professora Luciana Ballestrin no artigo “América Latina e o giro decolonial”[2], que trata da dominação dos países em desenvolvimento por países ricos mesmo depois dos processos de independência, como é o caso do Brasil. Para a autora, a colonialidade se manifesta como característica do capitalismo, mais recentemente na forma do neoliberalismo, com estratégias para a exploração de novos ativos — os dados e a exploração da dependência tecnológica. Trata-se de uma decorrência das novas manifestações do imperialismo e, posteriormente, do neoliberalismo, desde 1980, especialmente no Reino Unido e nos Estados Unidos. No Brasil a condição se intensificou nos anos 1990, com a reforma do Estado e as privatizações que se iniciaram a partir de meados dessa década.
A ideia de colonialidade coincide com o panorama traçado por Shoshana Zuboff em A era do capitalismo de vigilância[3], por Evgeny Morozov em Big Tech[4] e por Letícia Cesarino em O mundo do avesso[5]. Essas três obras convergem na afirmação de Letícia Cesarino de que infraestruturas técnicas têm vieses políticos embutidos no design de seus sistemas algorítmicos. Segundo ela, um exemplo é o fato de que “a atual infraestrutura das novas mídias possui um viés político, e que esse viés é favorável à direita iliberal, aos conspiracionismos e às demais forças estruturais que ressoam em seu entorno”, criando condições para o enfraquecimento das instituições democráticas e, consequentemente, relaxando o exercício da soberania pelos países.
Nessa linha, são oportunas também as reflexões do economista francês Cédric Durand quando introduz a ideia de tecnofeudalismo. Segundo o autor,
A legislação em matéria digital atualmente não tem levado em conta que todos os esforços das Big Techs buscam aumentar o controle sobre o comportamento dos indivíduos, e a solução não reside apenas na defesa da mítica e saudável concorrência. É preciso dar aos poderes públicos, de uma escala local a uma transnacional, os meios para uma regulação do novo capital digital[6].
Soberania e aspectos legais
É fundamental que os institutos garantidores de soberania nos ordenamentos jurídicos modernos passem a contemplar não só o aspecto dos direitos individuais, mas também o da autonomia coletiva, fazendo-se necessárias atitudes, práticas e convicções democráticas por parte dos formuladores de políticas públicas que sirvam de base para orientar a atualização conjunta e constante dos direitos pelos poderes públicos, assim como os mecanismos de enforcement para a efetividade dos direitos[7].
Para tanto, o primeiro passo é reconhecer que as Big Techs se tornem efetivamente responsáveis pelos efeitos deletérios de suas práticas comerciais aplicadas por meio de sistemas algorítmicos sobre os quais temos quase nenhuma governança, tais como discriminação, incitação a vícios, sofrimento psicológico, consumismo exacerbado que atinge crianças e adolescentes, comprometimento das instituições democráticas, entre outros.
A Comunidade Europeia já deu passos relevantes nessa direção com a aprovação do Regulamento de Proteção de Dados Pessoais, que entrou em vigor em 2018, e, mais recentemente, com a edição do Digital Service Act e do Digital Market Act, em vigor a partir de 2023 e 2024, respectivamente. Esses documentos impõem limites, obrigações de transparência e responsabilidades para as Big Techs. Também o Reino Unido tem recente legislação com vistas a responsabilizar as plataformas pelas práticas de moderação de conteúdos.
No Brasil, entretanto, no campo legal, nossa soberania está rebaixada. São frequentes as discussões a respeito da aplicabilidade da legislação nacional aos provedores de aplicações na Internet, e esses debates já estão no Poder Judiciário, como foi o caso da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) n. 51 (Processo nº 0014496–52.2017.1.00.0000), ajuizada pela Associação de Startups e Empresas do Setor de TIC (Assespro). Recentemente julgada, essa ADC define a constitucionalidade e o alcance do art. 11 do Marco Civil da Internet (MCI), Lei nº 12.965/2014, quanto à obrigatoriedade de as empresas com sede e base de dados em outros países apresentarem ao Poder Judiciário conteúdos de comunicações coletados no Brasil, na linha do Cloud Act dos Estados Unidos e do que recentemente foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro nos termos da Convenção de Budapeste, por meio do Decreto nº 11.491, de 12 de abril de 2023.
Especialmente no campo dos graves e abrangentes problemas de segurança, sendo um bom exemplo o escândalo envolvendo o Facebook e a Cambridge Analytica ocorrido em 2018[8], e no da responsabilidade das plataformas pelas condutas adotadas no tratamento de dados pessoais e no gerenciamento do fluxo de informações e moderação de conteúdos, o debate segue um caminho bastante preocupante. Isso porque se tem atribuído ao art. 19 do MCI o motivo de não se poder responsabilizar os provedores de aplicações pelo crescimento de campanhas de desinformação, discursos de ódio e outras práticas criminosas, a ponto de se cogitar da alteração ou até mesmo da flexibilização do MCI. Nesse sentido se manifestou o Ministro Luís Roberto Barroso em conferência promovida pela Unesco em fevereiro de 2023 na cidade de Paris — Internet for Trust[9]”.
Essa discussão é um reflexo da atuação frouxa dos órgãos públicos competentes no sentido de fazer valer ferramentas legais que garantem a responsabilidade de fornecedores quanto às suas práticas comerciais. É o caso do próprio MCI (art. 3º, VI), e do CDC — que impõe padrões rígidos de qualidade, envolvendo inclusive segurança e responsabilidade objetiva –, do CC, do ECA, do CP, da Lei Eleitoral, da LGPD, entre outras.
Embarcar no discurso falacioso segundo o qual a responsabilidade dos provedores de aplicações estaria limitada às hipóteses de descumprimento de ordem judicial para remoção de conteúdos significa, para além de confundir a culpa por conteúdos ilícitos postados por usuários com a culpa pelos efeitos decorrentes das práticas algorítmicas para gerenciamento de conteúdos — por exemplo, recomendação, redução de alcance, remoção, impulsionamento de conteúdos e suspensão e cancelamento de contas –, condutas permissivas quanto ao uso de plataformas de mensagens privadas para a difusão em larga escala de desinformação, com o uso ilegal de dados pessoais, atacando a garantia constitucional da dignidade da pessoa humana e ignorando as disposições do MCI, do CDC e do CC.
Caso escandaloso de relaxamento no exercício da soberania é o desrespeito ao princípio da continuidade, expresso no inciso IV do art. 7º do MCI, que estabeleceu o caráter do serviço de conexão à Internet, essencial para o exercício da cidadania, assim como a violação à neutralidade da rede, conforme reza o art. 9º da mesma lei. Isso porque está configurada a omissão reiterada dos poderes públicos competentes — Secretaria Nacional do Consumidor e Agência Nacional de Telecomunicações — diante da contratação em massa e preponderante no Brasil de acesso à Internet pela rede móvel, com planos pré-pagos para franquias baixíssimas associadas à prática do zero rating, que impõem o bloqueio do acesso ao final do pacote de dados e permitem o tráfego apenas dos dados das aplicações da Meta.
Esse modelo de exploração do serviço afeta mais de 70 milhões de brasileiros, impondo um acesso precário à Internet e criando condições discriminatórias para os consumidores de baixa renda das classes C, D e E, como mostram as pesquisas TIC Domicílios do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (CETIC.br)[10]. Pesquisa divulgada neste ano pelo Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (NIC.br), mostram os níveis baixíssimos de conectividade significativa no Brasil[11]; apenas 22% dos usuários de Internet no país têm acesso significativo.
Com esse cenário, criam-se condições que facilitam discursos de ódio e as campanhas de desinformação e, consequentemente, fragilizam-se as estruturas de direitos e formação política desses cidadãos, como temos visto nos últimos anos e com os resultados das últimas eleições, desde 2014.
Ou seja, falta enforcement de modo a conferir efetividade à soberania, para que as leis brasileiras que impõem obrigações de transparência, segurança e responsabilidade aos fornecedores de serviços, como está expresso no CDC, arquem com as consequências em termos de responsabilidade objetiva, também expressa no parágrafo único do art. 927 do CC.
Vale destacar que a defesa do consumidor pelo Estado está estabelecida como garantia individual e coletiva no inciso XXXII do art. 5º da Constituição, e como princípio da ordem econômica no inciso V do art. 170, que trata dos princípios gerais da atividade econômica.
Entretanto, por conta da visão equivocada a respeito das obrigações que já são impostas às plataformas, estamos correndo o risco de flexibilizar direitos conquistados a duras penas e consensos internacionais sobre governança da Internet. É o caso do princípio da inimputabilidade da rede, que tem sido fundamental para garantir a liberdade de expressão e impedir a censura na Rede.
Nessa direção, oportuno resgatar o Relatório Especial para Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), publicado em 2013[12], sobre cibersegurança. O relatório informa que esse conceito deve ser usado de forma ampla, contemplando desde a segurança da infraestrutura nacional e das redes sobre as quais os serviços de Internet são prestados até a segurança ou integridade dos usuários.
O entendimento, que vem sendo amplamente divulgado, no sentido de reduzir as obrigações de transparência e responsabilidade das plataformas que atuam no país representa o rebaixamento de nossa soberania, trazendo como reflexo o enfraquecimento de nossa jurisdição e do caráter impositivo de nosso ordenamento jurídico em vários campos. Esse cenário leva ao comprometimento do desenvolvimento científico e tecnológico e flexibiliza direitos fundamentais e sociais, além de nos lançar num cenário de enorme insegurança, com impactos coletivos.
Soberania e aspectos políticos
Quanto aos aspectos políticos, somos obrigados a reconhecer que o Estado brasileiro, especialmente a partir de 2016, não atuou para garantir autonomia e independência ao país de modo a viabilizar o desenvolvimento da ciência, tecnologia e inovação. Ao contrário: investimentos nos setores públicos foram drasticamente reduzidos em virtude da Emenda Constitucional nº 95, de dezembro de 2016, conhecida como emenda do teto de gastos públicos, editada como um dos primeiros atos do Presidente Michel Temer depois do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, no cenário de reação das forças neoliberais aos governos anteriores do Partido dos Trabalhadores.
A análise dos investimentos feitos nessas áreas nos últimos anos mostra um quadro dramático. É o que atestam os gráficos elaborados por Fernanda de Nigri, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), e pela Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC), tendo como fonte o Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento (SIOP) e o Banco Central Brasil.
Os gráficos demonstram que desde 2013, quando as forças neoliberais começaram a ganhar espaço no campo político brasileiro, o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT) foi à míngua, revelando que o Brasil abdicou de implementar políticas estruturadas de fomento à ciência e tecnologia.
O resultado foi o aumento da dependência do país de empresas transnacionais que atuam de forma determinante nos serviços públicos federais, estaduais e municipais, com importância estratégica para o desenvolvimento econômico, social e cultural, especialmente nos campos da educação e da administração de dados públicos. O Dataprev e o Serpro, por exemplo, empresas públicas que fornecem soluções de Tecnologia da Informação e Comunicação (TIC) para aprimoramento e execução de políticas sociais do Estado brasileiro — e que por isso lidam com volumes vultosos de dados pessoais sensíveis –, usam preponderantemente serviços de nuvem e tecnologia de empresas como Microsoft, Google e Huawei.
A Secretaria de Governo Digital tem promovido estudos para definir um novo modelo de armazenamento de dados em nuvens governamentais, que, segundo tem sido noticiado, deverão ter preferência no momento da escolha dos serviços a serem contratados, estimulando o desenvolvimento de data centers próprios de órgãos e empresas que integram a Administração Pública federal, integrantes do Sistema de Administração de Recursos de Tecnologia da Informação (SISP). Ou seja, o atual governo tem promovido iniciativas no sentido de investir mais em governança de dados e em Inteligência Artificial. São pouquíssimos os órgãos que já têm uma atuação consistente nesses campos, e todos num nível bem inferior o que se considera ideal[13].
Ainda com relação aos gráficos acima, vale destacar que mesmo as verbas efetivamente destinadas à ciência e tecnologia passaram a ser ou significativamente contingenciadas ou ainda não utilizadas efetivamente pelos órgãos de fomento. Artigo publicado por Claudio Castanheira e Caio do Nascimento trouxe dados divulgados em janeiro de 2024, no Encontro Anual do Fórum Econômico Mundial ocorrido em Davos, relativos ao estudo The future of growth, que analisou características de crescimento de 107 países, incluindo o Brasil:
O estudo publicado em Davos é metodologicamente novo, mas o cenário final não: o Brasil teve, até o momento, um perfil de crescimento econômico pouco associado à inovação, com uma capacidade inovadora abaixo da média global. O estudo traça uma comparação entre as trajetórias de crescimento de países de renda alta, média e baixa sob a óptica de quatro pilares básicos: Capacidade Inovadora, Inclusão Social, Sustentabilidade e Resiliência. Os resultados, de modo geral, indicam que a trajetória de crescimento de países de alta renda é caracterizada por altos níveis de Capacidade Inovadora, Inclusão Social e Resiliência, porém, o estudo mostra haver espaço para melhoria em aspectos de sustentabilidade. Em contrapartida, as trajetórias de crescimento do Brasil e de outros países de renda média são caracterizadas por escores inferiores à média global nos pilares de Capacidade Inovadora, Inclusão e Resiliência, com desempenho superior apenas no aspecto Sustentabilidade. O relatório indica que o perfil de crescimento brasileiro se compara ao de países como Benim, Costa do Marfim, Gana, Índia, Jordânia, Quênia, Ruanda, Marrocos e Tanzânia. Especificamente no pilar de Capacidade Inovadora, o Brasil alcançou aproximadamente 42 pontos, ficando atrás de países como Malásia (52), Indonésia (45) e Tailândia (48), todos também considerados de renda média-alta. Alguns países de renda média-baixa, como Vietnã (44) e Ucrânia (46), também superam o Brasil em termos de potencial de inovação[14].
Preocupantes ainda são outros cenários revelados pelo estudo: entre os diversos indicadores sobre capacidade de inovação estão não só o volume de investimento em Pesquisa e Desenvolvimento, mas também o impacto de publicações científicas e depósitos de pedidos de patente. No Brasil não há sinergia entre esses elementos por força do que se entende como um “hiato entre a produção de conhecimento científico e a transformação deste em soluções tecnológicas”[15], com a consequência de um baixíssimo nível de registros de patentes brasileiras. É o que mostra o gráfico a seguir, tendo como fonte o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI):
Essa realidade tem sido extremamente prejudicial para o país. Representantes da sociedade civil e acadêmicos entregaram ao Presidente Lula, ainda na fase da campanha eleitoral de 2022, carta aberta[16] na qual afirmamos que a concentração das ofertas de tecnologia por empresas transnacionais cria uma relação de dependência que reduz a diversidade do mercado e limita as ofertas produzidas no Brasil e que dados sensíveis de diversos segmentos da nossa população e de grande valor econômico não podem continuar a serem extraídos do país para alimentar os modelos de negócios das grandes plataformas. Com base em sistemas algorítmicos, esses dados são utilizados para nos vender produtos e serviços em condições assimétricas e abusivas, na lógica do capitalismo de vigilância, como destacado por Shoshana Zuboff, o que fragiliza nossas instituições e os direitos fundamentais da população, ampliando nossa condição de dependência e colonialidade.
E, pior, com papel de destaque nos processos eleitorais a partir da reforma da Lei Eleitoral de 2017, que transformou essas empresas nos principais palcos de debate público sobre a política brasileira, pondo em risco o Estado de Direito e as instituições democráticas, como vimos na tentativa de golpe ocorrida em 8 de janeiro deste ano, que visava impedir o governo do Presidente Lula.
Essa dependência tem implicado também na precarização das relações trabalhistas, com a perda de direitos básicos do trabalhador, garantidos constitucionalmente, como mostram dados divulgados pelo IBGE, de acordo com os quais o número de empregados com carteira assinada no setor privado é estimado em 37,950 milhões contra 13,44 milhões sem carteira; com trabalhadores por conta própria de 25,55 milhões[17].
No campo da educação, como mostram as pesquisas do Educadigital, mais de 70% de universidades e escolas públicas e privadas entregaram suas estruturas de dados, e-mails e armazenamento de dados sobre produção acadêmica a empresas como Google e Microsoft, com contratações sem licitação, sob o fragilíssimo argumento de que são contratos sem custos para a Administração Pública. Como se a entrega dos dados de milhões de alunos e de pesquisas não demandasse modelo de contratação em bases rigorosas, com cláusulas claras para a garantia do interesse público e da aplicação de responsabilidade sobre o tratamento de dados[18].
Como está dito na carta aberta já referida,
O conhecimento produzido pelos cientistas brasileiros hoje corre pelas veias fechadas que irrigam o coração das empresas de tecnologia do Vale do Silício, colocando em grande risco a produção científica e o ecossistema tecnológico do país[19].
É certo que a partir de 2023, como resultado dos objetivos do Governo Lula, o FNDCT estruturou o Plano Anual de Investimento em dez programas mobilizadores, que, esperamos, serão efetivamente desdobrados em ações a serem executadas pela FINEP e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), principalmente por meio de chamadas públicas, com o escopo anunciado de reverter o quadro de dispersão e fragmentação de ações ocorrido nos governos anteriores. O objetivo é maximizar o impacto dos investimentos do FNDCT sobre o desenvolvimento econômico, científico, tecnológico e social do país.
Os efeitos negativos sobre a desarticulação entre políticas voltadas para a ciência e tecnologia, para a educação e para atividades industriais e produtivas em geral tornam-se ainda mais graves no cenário de desenvolvimento acelerado da Inteligência Artificial, no qual o Brasil permanece dependente das grandes transnacionais, a maioria delas estadunidense.
O pior é que, no campo das infraestruturas físicas e lógicas, também estamos nos tornando cada vez mais dependentes de empresas transnacionais. A alteração na Lei Geral das Telecomunicações (Lei nº 9.472/97) ocorrida em 2019 por meio da Lei nº 13.789 autorizou a transferência para as concessionárias privadas do serviço de telefonia fixa da totalidade das redes públicas, incluindo boa parte do backhaul, que dá suporte à conexão à Internet, e dos dutos por onde passam essas redes por todo o Brasil. Essa mudança representa um aprofundamento da privatização ocorrida em 1998 no setor, ampliando a dependência do país num campo estratégico para seu desenvolvimento econômico, social e cultural.
Ainda no campo da infraestrutura de acesso à Internet, a solução que tem sido utilizada pelos governos federal e estaduais de utilizar de forma preponderante os satélites da Starlink para conectar a região Norte é bastante preocupante; já em 2022 a empresa de Elon Musk prestava serviço de conexão em 19 mil escolas na Amazônia, o que a princípio pode ser considerado um avanço. Entretanto, o serviço é prestado sem as devidas garantias contratuais quanto à proteção de dados pessoais e garantias de continuidade, aprofundando a vulnerabilidade dos usuários daquela região, para além de acirrar a dependência do Brasil quanto à infraestrutura.
Precisamos que os Ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovação, das Comunicações, da Gestão e Inovação dos Serviços Públicos e do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, articulados com os Ministérios da Fazenda, do Planejamento e da Justiça, definam suas políticas sob a perspectiva de que a economia hoje se apoia principalmente no capital imaterial[20], tendo como fonte o conhecimento e a exploração do Big Data, com impactos determinantes para o valor do capital, das relações de trabalho e para a condição de autonomia das economias nacionais. Os dados referidos aqui compõem um cenário do país na condição de colonialidade e indicam a necessidade urgente de o governo, além de rever a estratégia nacional para a Inteligência Artificial, como tem anunciado, mover esforços para estruturar uma Estratégia Nacional para a Soberania Digital que contemple a economia de dados, aspectos de ciência e tecnologia e o desenvolvimento da indústria nacional e da infraestrutura. Com a participação ampla da sociedade civil e recorrendo ao acúmulo técnico, de representatividade e de infraestrutura que já temos com o Comitê Gestor da Internet no Brasil, será possível avançar na governança multissetorial em favor da autonomia do país.
[1] Big Techs: o que são essas empresas e qual a sua importância para o mercado? https://www.empiricus.com.br/explica/big-techs/ acesso em 29 abr 2024.
[2] BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, Brasília: UnB, n. 42, 2023.
[3] ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância. Tradução George Schlesinger. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.
[4] MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. Tradução Claudio Marcondes. São Paulo: Ubu, 2018.
[5] CESARINO, Letícia. O mundo do avesso: verdade e política na era digital. São Paulo: Ubu, 2022.
[6] DURAND, Cédric. Tecnofeudalismo: crítica de la economía digital. Tradução Víctor Goldstein. Gipuzkoa: Kaxilda; Adrogué: La Cebra, 2021. Tradução e grifo nossos.
[7] HONNETH, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015. p. 138–142.
[8] O maior escândalo de “vazamento” de dados, o caso Facebook — Cambridge Analytica, e a importância da Lei de Proteção de Dados (LGPD) no Brasil https://www.jusbrasil.com.br/artigos/o-maior-escandalo-de-vazamento-de-dados-o-caso-facebook-cambridge-analytica-e-a-importancia-da-lei-geral-de-protecao-de-dados-pessoais-lgpd-no-brasil/1244600777 Acesso em 29 abr 2024.
[9] Em conferência da Unesco, Barroso defende regulamentação da internet. João Ozorio de Melo https://www.conjur.com.br/2023-fev-25/eua-barroso-defende-regulamentacao-internet-unesco/ Acesso em 29 de abr 2024.
[10] https://cetic.br/pt/pesquisa/domicilios/indicadores/ Acesso em 29 abr 2029.
[11] . Arquivo da publicação Conectividade Significativa — propostas para medição e o retrato da população no Brasil. NIC.br. 2024, pág.109. https://nic.br/media/docs/publicacoes/7/20240415183307/estudos_setoriais-conectividade_significativa.pdf Acesso em 29 abr 2029.
[12] . Liberdade de expressão e Internet — Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 2013 http://www.oas.org/pt/cidh/expressao/docs/publicaciones/2014%2008%2004%20Liberdade%20de%20Expressão%20e%20Internet%20Rev%20%20HR_Rev%20LAR.pdf Acesso em 29 abr 2024.
[13] QUEIROZ, Luis. Soberania e criticidade dos dados definirão uso prioritário das nuvens de governo. Capital Digital, 12 mar. 2024. Disponível em: https://capitaldigital.com.br/soberania-e-criticidade-dos-dados-definirao-uso-prioritario-das-nuvens-de-governo/. Acesso em: 12 mar 2024.
[14] CASTANHEIRA, Claudio; NASCIMENTO, Caio do. Entre as bancadas dos laboratórios e as inovações de mercado: o hiato brasileiro. Clarke Modet, 28 fev. 2024. Disponível em: https://www.clarkemodet.com/pt-pt/artigos/entre-as-bancadas-dos-laboratorios-e-as-innovaoes-mercado-o-hiato-brasileiro/. Acesso em: 12 mar. 2024.
[15] CASTANHEIRA, Claudio; NASCIMENTO, Caio do. Entre as bancadas dos laboratórios e as inovações de mercado, cit.
[16] CARTA PARA A SOBERANIA DIGITAL. 2022. Disponível em: http://www.em-rede.com/site/ciencia-aberta/carta-para-soberania-digital. Acesso em: 12 mar. 2024.
[17] País tem 700 mil desempregados a menos em um ano. Desalento cai, ocupação e renda crescem https://www.redebrasilatual.com.br/economia/pais-700-mil-desempregados-a-menos-desalento-cai-ocupacao-e-renda-crescem/ Acesso em 29 abr 2024.
[18] Educação em um cenário de plataformização e de economia dos dados — problemas e conceitos. Grupo de Trabalho Plataformas educacionais do Comitê Gestor da Internet no Brasil. Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. — São Paulo, SP : Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2022 https://cgi.br/media/docs/publicacoes/1/20220929112852/educacao_em_um_cenario_de_plataformizaçao_e_de_economia_de_dados_problemas_e_conceitos.pdf Acesso em 29 abr 2024.
“O Observatório Educação Vigiada (s.d.)3 tem mapeado o aumento dos acordos entre instituições públicas de educação (universidades, redes estaduais e municipais) e grandes corporações de tecnologia (Big Techs) no Brasil e na América do Sul para hos- pedagem dos servidores de e-mail. Dados de agosto de 2021 (PRETTO et al., 2021) indicam que 66% das instituições brasileiras hospedam seus serviços de e-mail no Google ou na Microsoft. O cenário é acentuado para secretarias estaduais: 75% dos servidores de e-mail utilizados pelas secretarias estão associados às mesmas empresas (PRETTO et al. 2021)”.
[19] CARTA PARA A SOBERANIA DIGITAL, cit.
[20] GORZ, André. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume, 2005