Como regular as plataformas digitais?

Como regular as plataformas digitais?

22 de julho de 2023

O deputado Orlando Silva (PCdoB), relator do PL 2630/2020, que propõe uma Lei para a Liberdade, Transparência e Responsabilidade na Internet, conhecido como PL das fake news, em entrevista ao Portal 360 dia 22 de julho último, informou que o novo relatório relativo à proposta já está finalizado e "que a definição do órgão regulador das plataformas digitais é o único impasse do projeto. O congressista disse que o parecer do projeto está pronto para ser apresentado depois do recesso – que termina em 1º de agosto. No entanto, declarou que a determinação do órgão será feita “juntamente com o presidente da Câmara Arthur Lira e com os líderes”.

Esse quadro nos leva a acender o farol vermelho e a lamentar que uma decisão legislativa tão estratégica para o desenvolvimento do país e para nossas instituições democráticas tenha sido capturada por parlamentar de extrema direita e com histórico comprometido com o bolsonarismo, como é o caso do Presidente da Câmara Federal, e nem tanto com os interesses públicos e com os princípios republicanos.

Quanto ao tema da regulação das plataformas, o Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) instaurou processo de consulta pública, colocando uma série de questões sobre o tema para ouvir a sociedade. O processo se encerrou no último dia 16 de julho e em breve teremos uma compilação sobre as contribuições dos diversos segmentos da sociedade que participaram.

Entre as diversas reflexões propostas pelo CGI.br, foi apresentada a seguinte pergunta: Quais órgãos, agências ou autoridades públicas devem estar diretamente envolvidos com a implementação da regulação de plataformas digitais? Quais as principais atribuições que esses atores devem ter?

Participei da consulta respondendo, entre outras, esta questão, e compartilho aqui as reflexões que apresentei ao CGI.br:

Bruno Queiroz Cunha, em trabalho desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), afirma que “Como sucedâneo de reformas institucionais de caráter liberalizante e pró-mercado, um tipo específico e delimitável de órgão regulador, qual seja, a agência reguladora, passou a integrar o roteiro de propostas de reformas administrativas mundo afora, aportando no Brasil nos anos 1990. Esse movimento reformista ancorou-se, em particular, em concepções neoinstitucionalistas (no sentido econômico), de orientação neoclássica (Andrews, 2013)”.

As reformas às quais o autor se refere começaram a ocorrer com a edição da Lei 8.031/1990, que criou o Programa Nacional de Desestatização e deu origem a processos de privatização em diversos setores, como a energia elétrica, o gás, a radiodifusão e as telecomunicações.

Em virtude do processo de impeachment de Fernando Collor de Mello, a implementação das desestatizações foi estancada até a eleição de Fernando Henrique Cardoso, que assumiu o governo em 1995, acelerando, no Brasil, a dinâmica do neoliberalismo, doutrina iniciada a partir dos anos 1980 na Europa e nos EUA, com viés de liberalização econômica, desregulamentação, livre comércio, privatizações, austeridade fiscal e corte nas despesas governamentais.

Nesse contexto, como afirma Bruno Queiroz Cunha, foram criados novos “aparatos estatais, com a finalidade de (re)enquadrá-los à nova etapa do capitalismo, nascida do auge do neoliberalismo (Baimyrzaeva, 2012; Osborne e Gaebler, 1992). Em uma leitura complementar, entende-se que esse estágio determinou também a ascensão do “capitalismo regulatório”, dadas as novas prio- ridades dos governos na gestão econômica, mais indiretas e focalizadas que antes (Braithwaite, 2008; Levi-Faur, 2005). Indistintamente, nota-se nesse processo um entrelaçamento com os eixos de suporte à nova gestão pública – new public management (NPM) – (Christensen e Lægreid, 2006)”.

O histórico de atuação das agências reguladoras no Brasil, criadas com o objetivo de conferir segurança jurídica para os agentes econômicos interessados na privatização das telecomunicações, energia elétrica e gás, ocorridas a partir dos anos 1990, revela os graves conflitos instaurados, seja por ação ou por omissão desses organismos, entre interesses privados das empresas reguladas, com forte predomínio nos processos técnicos promovidos pelas agências correspondentes à construção de normas para orientar o funcionamento dos setores, e o interesse público.

Entre os problemas que emperram uma atuação afinada com o interesse público das agências está o fato de que, com muita frequência, os agentes públicos ou vêm de empresas privadas ou saem da agência e vão trabalhar nas empresas reguladas, comprometendo a produção de normas que deveriam estar voltadas para a universalização dos serviços públicos, a modicidade de tarifas e preços viabilizando o acesso, a preservação de patrimônios públicos repassados por meio de concessões à iniciativa privada, entre outros.

Os problemas com a atuação das agências no Brasil estão fartamente documentados em inúmeros Acórdãos do Tribunal de Contas da União (TCU) – órgão ao qual a Constituição Federal atribuiu o papel de fiscalizar as agências, demonstrando não só danos difusos quanto ao direito de acesso a esses serviços e garantia de investimentos necessários para atender as demandas de infraestrutura para o desenvolvimento econômico e social do país, garantia de concorrência, mas também irregularidades graves quanto à má versação de recursos públicos.

A situação de enorme desigualdade no acesso aos serviços de telecomunicações e acesso a Internet no Brasil, a insuficiência de infraestrutura de redes depois de mais de 24 anos de privatização, a perda bilionária de bens reversíveis relativos às concessões da telefonia fixa, o debacle da OI – principal concessionária, detentora das redes e dutos em 90% do país, estão entre os vultosos prejuízos decorrentes de processos claros de captura das agências, mais especificamente da ANATEL, que hoje tem feito um lobby absolutamente reprovável para se tornar o órgão regulador das plataformas digitais, a despeito dos incontornáveis limites legais para que isto ocorra.

A captura ocorre por influências políticas, econômicas, empresariais, dentre outras. Marçal Justen Filho, no livro “O direito das agências reguladoras independentes”. São Paulo: Dialética, 2002, pp 369-370, ensina que: "A doutrina cunhou a expressão 'captura' para indicar a situação em que a agência se transforma em via de proteção e benefício para setores empresariais regulados. A captura configura quando a agência perde a condição de autoridade comprometida com a realização do interesse coletivo e passa a produzir atos destinados a legitimar a realização dos interesses egoísticos de um, alguns ou todos os segmentos empresariais regulados. A captura da agência se configura, então, como mais uma faceta do fenômeno de distorção de finalidades dos setores burocráticos estatais".

A captura, então, termina por desvirtuar os princípios que devem orientar a administração pública, nos termos do art. 37, da CF, comprometendo a finalidade da regulação, produzindo efeitos indesejáveis de diminuição da qualidade do serviço, da eficiência, gerando insegurança e instabilidade para o setor regulado e para os cidadãos.

O fenômeno da captura no Brasil já foi reconhecido, inclusive, pelos Tribunais do país, como no caso da Apelação Cível nº 342.73910, julgada pelo Tribunal Regional Federal da 5ª. Região, quando em Ação Civil Pública promovida pelo Ministério Público Federal foi reconhecida a ilegalidade da nomeação de conselheiro da Anatel que já tinha ocupado cargo para o concessionário regulado. Vale a transcrição de parte da decisão:

"'diante de um conflito envolvendo interesses contrapostos da sociedade e das prestadoras de serviço de telecomunicações, a sua atuação estaria comprometida com os interesses deste último segmento. Necessário, pois, para que alguém represente a sociedade, não esteja comprometido com um segmento específico desta, a fim de que possa ter uma atuação imparcial em prol do bem comum' [...] A nomeação dos apelantes como membros do Conselho Consultivo da ANATEL representa o que a doutrina estrangeira e alguns doutrinadores brasileiros têm denominado de captura da agência pelos interesses regulados. Ocorre a captura do ente regulador quando grandes grupos de interesses ou empresas passam a influenciar as decisões e atuação do regulador, levando assim a agência a atender mais aos interesses das empresas (de onde vieram seus membros) do que os dos usuários do serviço, isto é, do que os interesses públicos".

Também na Ação Civil Pública promovida pela PROTESTE – Associação de Consumidores, transitou em julgado decisão condenando a ANATEL a incluir nos contratos de concessão da telefonia fixa os inventários com a descrição dos bens reversíveis entregues à iniciativa privada para a exploração do serviço e que, de acordo com a Lei Geral de Telecomunicações, deveriam voltar à União para se garantir o interesse e patrimônio públicos. Naquela ação ficou reconhecido que: “A própria ANATEL, embora tenha por responsabilidade a fiscalização desses bens, não tem cumprido esse importante papel, conforme apurado na Auditoria Interna nº 11/2010 (fls. 404-424), da qual se pode concluir que: a) No período de 1998/2001, “a Anatel não procedeu a nenhuma atividade de acompanhamento e controle dos bens reversíveis”; b) Não existem documentos ou registros que auxiliem na atividade de controle dos bens reversíveis; c) o Regulamento de Bens Reversíveis estabelece que as operadoras devem remeter à Anatel, anualmente, o Relatório de bens reversíveis, entretanto não cumprem, pois não têm pleno conhecimentos dos seus bens, por falta de inventário; d) Existe a necessidade da própria Anatel ter conhecimento dos bens reversíveis, vinculados à prestação de serviços das concessionárias de telecomunicações, por ser indispensável ao monitoramento da continuidade de prestação do serviço” (Proc nº 29346-30-2011.4.01.3400).

Ainda com relação à Anatel, o TCU já decidiu que: “Decorridos dez anos do processo de privatização, a ANATEL ainda não possuía os dados necessários para a realização da regulação econômica de uma concessão de serviço público e que não estava atuando efetivamente no cumprimento das obrigações legais de acompanhamento do equilíbrio econômico-financeiro das concessões (TC 019.677/2006, Acórdão 2.692/2008 – Plenário).

A situação no setor de Planos de Saúde, regulado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) não é diferente e tem lançado milhões de consumidores em situação de extrema vulnerabilidade, como se pode concluir pela quantidade enorme de ações que ocupam o Poder Judiciário. Quanto à atuação desta agência há estudos imparciais, do mais alto nível de confiabilidade científica, realizados pelo Instituto de IPEA e pelo TCU, no Acórdão 2.485/2012-TCU-Plenário (TC 030.285/2012-7), que corroboram o entendimento sobre a grave ineficiência da atuação da agência.

Fiz esta introdução para justificar meu entendimento no sentido de que o modelo de agência reguladora – sustentáculo do neoliberalismo, ainda que se propague sua autonomia e independência, historicamente têm atuado de forma capturada pelos interesses privados, sendo claramente inadequado para a regulação das plataformas digitais.

Nesse sentido, vejo mais sentido numa estrutura regulatória composta por um órgão representativo das empresas, por um Conselho Interministerial e pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

A atuação das plataformas implica em múltiplos setores com potencial de impacto em larga escala em direitos fundamentais, econômicos, culturais, educacionais, políticos, sociais e trabalhistas entre outros e um modelo centralizado de regulação e com baixa representação democrática, como é o caso das agências em virtude de suas configurações legais, não dará conta de regular devidamente para garantir direitos em tão largo espectro.

Artigo publicado no dia 17 junho na Isto É, por Pedro Henrique Ramos, converge com esse entendimento quando afirma que numa entidade centralizada “surgem as condições ideais para captura por interesses corporativos e por governos com tendências autoritárias”.

Sendo assim, a proposta apresentada pela Comissão Especial de Direito Digital do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, parece mais adequada às necessidades de regulação, ao propor o Sistema Brasileiro de Regulação de Plataformas Digitais tripartite, composto por um Conselho de Políticas Digitais, CGI.br e Entidade de Autorregulação.

Divirjo apenas quanto à composição do conselho, pois entendo que ele deva ser mais amplo, integrado por diversos ministérios que já contam com seus órgãos específicos com poder regulatório, nos termos do art. 87, incs. I e II, da CF, e poder de polícia para promover fiscalização e imposição de sanções, a exemplo do que ocorreu recentemente com a edição da Portaria 351/2023, pelo Ministério da Justiça, por meio da qual se imbuiu a Secretaria Nacional do Consumidor de adotar medidas junto às plataformas, no contesto da Operação Escola Segura. Ou seja, entendo que o Conselho deve ser integrado pelos Ministérios da Justiça, Direitos Humanos, Educação e Cultura, Saúde, Trabalho, Casa Civil – que hoje conta com a Secretaria de Políticas Digitais, Comunicações, CGI.br, tendo em vista as atribuições que recebeu pelo Marco Civil da Internet, e também pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados Pessoais, tendo em vista o caráter técnico altamente especializado do acompanhamento da exploração de dados pessoais por empresas e setores públicos. Importante que o Conselho conte também com representação da sociedade civil.

Quanto ao papel a ser desenvolvido pelo CGI.br, entendo que a proposta apresentada pelo PL 2630/2020, atribuindo ao Comitê o papel de promover e organizar os debates em torno do Código de Condutas voltado para orientar a elaboração dos termos de serviços das plataformas digitais garantirá caráter multissetorial imprescindível, quando se trata de atividades com impacto em tantos setores.

Outras atividades que se pretendam atribuir ao CGI.br com caráter normativo ou fiscalizatório poderão desnaturar o Comitê com impactos para o Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR, o que seria indesejável, diante do histórico de sucessos da entidade, que tem sido um modelo internacional para a governança da Internet.

Por fim, importante destacar que o Decreto 8.771/2016, que regulamenta o Marco Civil da Internet (art. 17 a 20), atribuiu à Secretaria Nacional do Consumidor, ao Sistema Brasileiro da Concorrência e a ANATEL, em linha com as diretrizes estabelecidas pelo CGI.br, o papel de garantir transparência e fiscalização das plataformas, para garantir enforcement aos direitos estabelecidos pela lei; mas esta estrutura está atrofiada e deveria, a exemplo do que começou a fazer o Ministro Flávio Dino, a atuar para enfrentar as ilegalidades que vêm sendo perpetradas pelas Bigtechs.