Eleições 2022 e bloqueio de aplicações na Internet - Base Legal

Eleições 2022 e bloqueio de aplicações na Internet - Base Legal

25 de janeiro de 2022

A polêmica agora é o que fazer diante da resistência de provedores de aplicações que prestam serviços na Internet no Brasil em ter representação no país e em cumprir decisões judiciais. A tônica da discussão recai hoje sobre o Telegram, plataforma à qual a horda de bolsonaristas e pessoas ligadas às pautas fascistas têm aderido, desde que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e o Supremo Tribunal Federal (STF) passaram a atuar no sentido de enfrentar as campanhas de desinformação.

Os fatos de hoje mais de 50% dos usuários de Internet no Brasil terem contas no Telegram e o uso abusivo do WhatsApp como ocorreu nas eleições de 2018, com violação a diversos dispositivos da lei eleitoral, como abuso de poder econômico, financiamento de campanhas por empresas, uso indevido de dados pessoais, disparos em massa de mensagens com conteúdos ilegais, levaram a que o Ministério Público Federal (MPF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), preocupados com as eleições de 2022, tenham feito inúmeras tentativas frustradas de comunicação com o provedor.

A preocupação é plenamente justificada, pois ainda que a grande maioria dos planos de dados móveis no Brasil sejam limitados com franquias irrisórias, associadas a acesso patrocinado (zero rating) para as aplicações do Facebook e do WhatsApp; ou seja, mais de 60 milhões de usuários especialmente das classes C, D e E acessarem principalmente o Facebook e WhatsApp, porque o tráfego dos dados dessas aplicações não é descontado da franquia, não podemos ignorar o efeito cruzado entre conteúdos postados entre as diversas plataformas; conteúdos desinformativos postados nos grupos de milhares de usuários no Telegram, poderão ser postados grupos do WhatsApp por aqueles que estejam vinculados ao financiamento ilegal de campanhas desinformativas, já que hoje no WhatsApp os grupos são limitados a 256 usuários.

Sendo assim, a falta de resposta do Telegram aos apelos do MPF e TSE abriu a discussão quanto estarem ou não as empresas obrigadas a ter representação no Brasil. Veja, estou falando de representação – uma porta onde se possa bater para a resolução de conflitos com os consumidores desses serviços e para atender as instituições brasileiras.

A discussão ocorre, pois há quem afirme não haver base legal para que se possa exigir dos provedores de serviços na Internet que tenham representação no Brasil e nem para, em caso de práticas ilegais pelas empresas, de se determinar o bloqueio do funcionamento das aplicações.

Está em curso desde 2020 o Projeto de Lei 2630, que se propõe a estabelecer a Lei de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, já aprovado no Senado, estando ainda em fase de debates na Câmara Federal. O PL 2630 trata especificamente da obrigatoriedade de “provedores de redes sociais e de serviços de mensageria privada terem sede e de nomearem representantes legais no Brasil”, bem como “manter acesso remoto, a partir do Brasil, aos seus bancos de dados, os quais conterão informações referentes aos usuários brasileiros e servirão para a guarda de conteúdos nas situações previstas em lei, especialmente para atendimento de ordens de autoridade judicial brasileira”.

O PL prevê também sanções para os provedores que descumpram a lei como advertência e multa, sem prejuízo de outras sanções civis, criminais ou administrativas, estabelecendo que, para a aplicação da sanção, "a autoridade judicial observará a proporcionalidade, considerando a condição econômica do infrator, as consequências da infração na esfera coletiva e a reincidência".

Infelizmente até agora o PL não foi votado e às vésperas das eleições as tensões em torno dos conflitos de interesses que diversos de seus dispositivos despertam têm crescido e levado a que este seja um momento difícil para a aprovação da lei.

É claro que o ideal para solucionar as perplexidades quanto às obrigações de provedores de serviços na Internet seria já termos a lei aprovada. Mas isso não significa que o Brasil não conte com ferramentas legais para preservar o processo eleitoral de iniciativas ilegais e de condutas abusivas de empresas que tentam ignorar a legislação do país.

A obrigatoriedade de representação no Brasil – base legal

Ao contrário do que alguns vêm sustentando, há, sim, base legal para que possamos exigir que entidades ou empresas estrangeiras que atuem no mercado brasileiro, prestando serviços e coletando e tratando dados dos consumidores, devam ter representação no país e atendam as demandas das instituições brasileiras, de modo a vaibiliza a interlocução necessária.

O Marco Civil da Internet (MCI) estabelece que “qualquer operação de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet em que pelo menos um desses atos ocorra em território nacional, deverão ser obrigatoriamente respeitados a legislação brasileira e os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros”.

Destaco que a lei fala qualquer operação, “mesmo que as atividades sejam realizadas por pessoa jurídica sediada no exterior, desde que oferte serviço ao público brasileiro ou pelo menos uma integrante do mesmo grupo econômico possua estabelecimento no Brasil”; ou seja, independente de estarmos falando de empresa ou entidade sem fins lucrativos, nacionais ou estrangeiras, a pessoa jurídica que explore aquelas atividades no Brasil estará sujeita à legislação do país, desde que “pelo menos um dos terminais esteja localizado no país”.

É inequívoco que os serviços de redes sociais, mensageria e streaming, até para funcionarem, implicam em coleta, tratamento e armazenamento, de acordo com o que está expresso no MCI, quando obriga que os provedores de aplicações guardem pelo prazo de pelo menos seis meses os registros de acesso a aplicações e que tais dados sejam disponibilizados mediante ordem judicial.

Devemos considerar também a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), quando afirma que ela se aplica a “qualquer operação de tratamento realizada por pessoa natural ou por pessoa jurídica de direito público ou privado, independentemente do meio, do país de sua sede ou do país onde estejam localizados os dados, desde que a atividade de tratamento tenha por objetivo a oferta ou o fornecimento de bens ou serviços ou o tratamento de dados de indivíduos localizados no território nacional; ou os dados pessoais objeto do tratamento tenham sido coletados no território nacional, considerando-se coletados no território nacional os dados pessoais cujo titular nele se encontre no momento da coleta”.

Para além do que dispõem o MCI e a LGPD, temos de levar em conta ainda e especialmente o Código de Defesa do Consumidor (CDC), na medida em que a relação que se estabelece entre os usuários dos serviços em questão e os provedores é de consumo, como já pacificou o Superior Tribunal de Justiça.

Sendo assim, fundamental ter claro que o CDC estabeleceu a Política Nacional das Relações de Consumo, que tem como “objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria da sua qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo", atendidos alguns princípios. Entre esses princípios temos o “incentivo à criação pelos fornecedores de meios eficientes de controle de qualidade e segurança de produtos e serviços, assim como de mecanismos alternativos de solução de conflitos de consumo”.

Quando trata dos direitos básicos do consumidor, o CDC garante “a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos” e afirma ainda que os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, “obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito”.

O CDC, com o objetivo de dar concretude à garantia de cumprimento da obrigação de boa fé objetiva pelos fornecedores, estabeleceu como direito básico do consumidor “a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade, tributos incidentes e preço, bem como sobre os riscos que apresentem”.

É incontestável, portanto, que o cumprimento das finalidades e obrigações estabelecidas por essas leis, às quais estão sujeitos os provedores de serviços na Internet, depende de que essas empresas tenham alguma forma de representação no país, de modo que tanto os usuários quanto as instituições brasileiras tenham um canal de comunicação para a solução de conflitos e adequação de condutas, bem como para que se possa levar a efeito a responsabilidade pela exploração das atividades que desenvolvem no país.

É verdade que os processos de comunicação pela Internet facilitam bastante os contatos e, portanto, a intelocução poderia se estabelecer por esses canais. Entretanto, no caso específico do Telegram, que não tem representante no Brasil, o fato é que tem ignorado solenemente os apelos do MPF e do TSE para tratar de temas afetados pelas atividades que desenvolve no país e que têm o potencial grave e incontestável de causar danos em escala individual, coletiva e difusa para cidadãos individualmente e para o processo eleitoral brasileiro, ameaçando a democracia no país.

Em 20 de janeiro O UOL publicou que:

Em 16 de dezembro, Barroso enviou um ofício ao Telegram, por e-mail, solicitando audiência com Pavel Durov, fundador da empresa, com sede em Dubai. Queria discutir uma cooperação contra a desinformação que circula no aplicativo e afeta a confiança nas eleições brasileiras. Barroso foi ignorado. Ao menos quatro tentativas de envio por correspondência também não tiveram sucesso. O tribunal não pretende enviar um representante à empresa porque detém informações de que no escritório em Dubai não há um representante de fato da companhia. Apenas um pequeno grupo de funcionários de baixo escalão dá expediente no local.... -

A resistência em atender os apelos das autoridades justifica o bloqueio do provedor?

Apesar de todo esse cenário, a princípio, a ausência de resposta às autoridades brasileiras, sem que haja um processo judicial em curso tratando de descumprimento da lei ou de ordem judicial não respalda uma ordem de bloqueio.

Especialmente porque, de acordo com a Constituição Federal, ninguém está obrigado a fazer ou deixar de fazer algo sem que haja previsão expressa na lei e, mais, a exploração de atividade econômica no Brasil é regida pela livre iniciativa. Além disso, há dezenas de milhões de cidadãos e empresas brasileiras que se utilizam do Telegram para se comunicar, o que legitima o argumento de que o bloqueio dos serviços sem a prática de ato ilegal não pode se sobrepor ao interesse público relacionado ao direito de comunicação e liberdade de expressão.

Entretanto, tem sido amplamente noticiado que, depois das medidas adotadas pelo WhatsApp para restringir o número de contatos em grupos no total de 256 e para limitar o encaminhamento de mensagens para até cinco pessoas por vez, ou para apenas uma pessoa no caso de mensagens que tenham a etiqueta informando o encaminhamento frequente, negacionistas da vacina, defensores da cloroquina e bolsonaristas têm aderido em massa ao Telegram, que não impõe estes limites, com o objetivo de promoverem desinformação em larga escala, como ocorreu nas eleições de 2018, na plataforma do WhatsApp.

O fato preocupa, pois o Telegram, desde novembro de 2021, como anunciado por Pavel Durov – principal representante do provedor – “o Telegram passará a ter mensagens patrocinadas dentro dos canais que tenham mais de 1 mil participantes. A proposta é de que a ferramenta sirva para promover outros canais e bots que existam dentro do Telegram. A receita servirá para cobrir os custos operacionais da plataforma e será dividida com os donos dos canais. A novidade não está aberta a todos ainda, seguindo em teste. A notícia foi dada pelo criador do aplicativo, Pavel Durov, em seu próprio canal no Telegram”, como noticiado pelo site Mobile Time.

Só essa aplicação, por exemplo, já viabiliza a violação de diversos dispositivos da Lei Eleitoral que, por exemplo, proíbe que nas propagandas eleitorais por meio de blogs, redes sociais, sítios de mensagens instantâneas e aplicações de Internet, realizadas por pessoas naturais, haja o impulsionamento dos conteúdos gerados ou editados por elas (art. 57-B).

Devido Processo Legal

Portanto, diante das notícias dos tipos abusivos e perigosos de uso que vêm sendo feito de aplicações do Telegram no Brasil e no mundo, conforme artigo de Pablo Ortelado publicado no O Globo e a resistência da empresa em reconhecer as instituições nacionais, pois já se manifestou afirmando quais tipos de ordem judicial está disposta ou não a cumprir, as autoridades e mesmo a sociedade civil poderão se valer do Poder Judiciário e do poder geral de cautela do juiz para promover ação de obrigação de fazer, de modo a obrigar o provedor a prestar informações às autoridades competentes e a providenciar um canal de interlocução e representação no país, para onde possamos direcionar intimações, citações e reclamações, a fim de que os direitos expressos no MCI, LGPD e CPC possam ser efetivos.

Veja o que Pavel Durov fala sobre as ordens judiciais, conforme o artigo mencionado:

“O Telegram diz que cumpre ordens judiciais relativas a suas funcionalidades públicas, como canais e bots. Esse cumprimento se dá em temas como terrorismo ou violações de direitos autorais, mas, segundo o blog da empresa, não se aplica “a restrições locais sobre liberdade de expressão”, nem a funcionalidades privadas, o que seria contrário às convicções libertárias do fundador da empresa, Pavel Durov. Em outras palavras, o Telegram escolhe as determinações judiciais que cumprirá: “Enquanto bloqueamos bots e canais terroristas, não bloquearemos ninguém que expresse pacificamente opiniões alternativas”.

Diante dessa declaração vale perguntar: primeiro, se nem as comunicações das autoridades são respondidas, onde serão entregues as intimações das ordens judiciais? Segundo, pode um provedor escolher quais ordens judiciais cumprir ou não? Importante ficar claro que o descumprimento de ordem judicial é conduta tipificada como crime no Brasil. E mais, as desinformações veiculadas pela plataforma durante o processo eleitoral serão consideradas pelo Telegram expressões pacíficas e opiniões alternativas, a exemplo das afirmações do Presidente Bolsonaro e de seus apoiadores e filhos de que as eleições de 2018 foram fraudadas e que ele teria ganhado no primeiro turno?

O processo judicial também poderá ser utilizado nos casos em que haja o uso ilegal do serviço de mensagem, com disparos em massa proibidos pela Lei Eleitoral, com conteúdos ilegais direcionados a grupos e a usuários da plataforma, determinando a suspensão de contas.

Porém, havendo a ordem judicial para remoção de conteúdos, sem representação do provedor no Brasil, onde será entregue a citação ou intimação judicial de forma célere e efetiva de modo a impedir o comprometimento do processo eleitoral? A solução de uma carta rogatória – procedimento previsto pela lei para citações e intimações em países estrangeiros – é absolutamente inviável para o caso de eleições, diante da demora.

Diga-se o mesmo para os casos de campanhas desinformativas que ponham em risco a saúde pública ou outros direitos fundamentais.

Segundo matéria publicada na revista Crusoé em novembro passado:

“Uma empresa criada por um russo de 37 anos, que tem entre 25 e 30 funcionários e sede em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, tem tudo para ser a arena onde ocorrerão os ataques mais baixos entre os candidatos a presidente do Brasil na eleição do ano que vem. A companhia é o Telegram, do aplicativo de envio de manesagens de mesmo nome. Seu criador é o russo Pavel Durov, que não dá entrevistas e de quem se tem pouca informação. Sua fortuna passa dos 17 bilhões de dólares. Durov se orgulha de ter criado um programa livre, que não se submete às pressões dos estados e que não pratica a censura, salvo quando a incitamento à violência. Com recursos que permitem viralizar conteúdos rapidamente, essa será, muito provavelmente, a plataforma predileta dos políticos que quiserem lançar boatos contra adversários ou espalhar teorias conspiratórias para conquistar eleitores”.

Bloqueio pode, mas deve ser medida excepcional

Estão em risco, portanto, o processo eleitoral e as instituições que sustentam a democracia no país; isso sem falar em outros direitos atacados por meio de discursos de ódio e negacionistas, que colocam em risco a população como um todo. Mesmo assim, é importante destacar que o bloqueio do serviço é medida que deve ser evitada, pelos impactos que pode ter na garantia de acesso a serviços de comunicação e liberdade de expressão.

Entretanto, nos casos e diante da recusa ou inviabilidade de o provedor de receber a ordem judicial para prestar informações – que é dever legal inequívoco, ou para suspensão de conta e/ou remoção de conteúdo, entendo que o interesse público deve prevalecer e então o bloqueio da aplicação da Internet se justifica.

A Constituição Federal traz o princípio da proporcionalidade para que seja aplicado nos casos em que haja aparente conflito entre direitos; no caso, o hipotético direito de liberdade de expressão e os direitos expressos nas leis eleitorais além do MCI, LGPD e CDC.

Digo hipotético pois, como tem sido assentado pelo STF, também a liberdade de expressão deve ser exercida com responsabilidade e tem limites.

Portanto, estando patente o cometimento de ilícitos que ponham em risco direitos coletivos e difusos e diante da resistência abusiva e ilegal de empresas de criarem espaços de atendimento para consumidores e instituições, o bloqueio, respeitado o devido processo legal, é medida legítima que encontra respaldo legal.