22 de março de 2022
O Ministro Alexandre de Moraes do Supremo Tribunal Federal atendeu pedido da Polícia Federal e, no último dia 18 de março, estabeleceu uma série de determinações, por meio de decisão que pretendia fosse sigilosa, a serem cumpridas pelo Telegram e pelos demais implicados na cadeia de obrigações que, se não fossem cumpridas, ensejariam a aplicação de multas diárias vultosas, bem como “a suspensão completa e integral do funcionamento do TELEGRAM no Brasil ... até o efetivo cumprimento das decisões judiciais” indicadas, “e com a indicação, em juízo, da representação oficial no Brasil (pessoa física ou jurídica)”.
A despeito das controvérsias em torno da decisão judicial, o certo é que em menos de 24 horas o Telegram pediu desculpas ao Tribunal, nomeou representante legal no Brasil – o advogado Alan Campos Elias Thomaz, com escritório em São Paulo, além de cumprir todas as exigências relativas à adoção de práticas e mecanismos tecnológicos para enfrentamento de desinformação e cometimento de ilícitos por meio da plataforma.
A decisão abriu um debate inflamado, pois, de fato, há aspectos jurídicos controversos, tais como os fundamentos legais do Marco Civil da Internet utilizados pelo Ministro (arts. 10, 11 e 12) para respaldar o bloqueio do Telegram e o fato de ter imposto multa diária de R$ 100 mil para “pessoas naturais e jurídicas que incorrerem em condutas no sentido de utilização de subterfúgios tecnológicos para continuidade das comunicações ocorridas pelo TELEGRAM”, submetendo-as “às sanções civis e criminais”, num processo que corre sob sigilo assim como esperava o Ministro fosse também a decisão.
Bloqueios, necessidade de representação no Brasil e o Marco Civil da Internet
Concordo com diversas críticas sobre alguns dos fundamentos utilizados pelo Ministro. De fato o art. 12 do Marco Civil da Internet trata de sanções pelo descumprimento das obrigações expressas nos arts. 10 e 11 da lei, que dizem respeito ao tratamento de dados e de comunicações privadas, e as penalidades previstas dizem respeito a atividades que envolvam coleta, armazenamento, guarda e tratamento de dados e não o bloqueio completo da plataforma do provedor de aplicações. Vale transcrever o texto legal:
Art. 12. Sem prejuízo das demais sanções cíveis, criminais ou administrativas, as infrações às normas previstas nos arts. 10 e 11 ficam sujeitas, conforme o caso, às seguintes sanções, aplicadas de forma isolada ou cumulativa: I - advertência, com indicação de prazo para adoção de medidas corretivas; II - multa de até 10% (dez por cento) do faturamento do grupo econômico no Brasil no seu último exercício, excluídos os tributos, considerados a condição econômica do infrator e o princípio da proporcionalidade entre a gravidade da falta e a intensidade da sanção; III - suspensão temporária das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11; ou IV - proibição de exercício das atividades que envolvam os atos previstos no art. 11. Parágrafo único. Tratando-se de empresa estrangeira, responde solidariamente pelo pagamento da multa de que trata o caput sua filial, sucursal, escritório ou estabelecimento
Porém, concordo também com o Ministro, com a ressalva do fundamento legal indicado, quando ele afirma:
“A plataforma TELEGRAM, em todas essas oportunidades, deixou de atender ao comando judicial, em total desprezo à JUSTIÇA BRASILEIRA. O desrespeito à legislação brasileira e o reiterado descumprimento de inúmeras decisões judiciais pelo TELEGRAM, – empresa que opera no território brasileiro, sem indicar seu representante – inclusive emanadas do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL – é circunstância completamente incompatível com a ordem constitucional vigente, além de contrariar expressamente dispositivo legal (art. 10, § 1º, da Lei 12.965/14)”. Os arts. 170 e 174, da Constituição Federal, quando tratam dos princípios gerais da atividade econômica, garante a livre iniciativa, mas também estabelecem contrapartidas no sentido de que os agentes econômicos devem arcar com o ônus regulatório, quando submete empresas públicas ou privadas ao poder normativo, regulatório e fiscalizatório do Estado"
É certo que jurisdição e limites territoriais estão intrinsecamente relacionados tendo em vista aspectos legais e de geopolítica, como podemos concluir por disposições constitucionais que estabelecem os princípios que regem as relações internacionais (art. 4º), bem como o âmbito de incidência da atuação dos órgãos do Poder Judiciário (arts. 92 e seguintes) e das leis editadas pelas unidades da federação brasileira, como já comentei em outro post sobre O STF e o Facebook - O Inquérito 4.781-DF.
Entretanto, as perplexidades apresentadas pelo caráter transfronteiriço da Internet e o fato de o Telegram ser uma empresa estrangeira sem sede no país não devem nos paralisar a ponto de cedermos a resistências que atentem contra garantias constitucionais e legais estabelecidas para reduzir a vulnerabilidade dos cidadãos, consumidores e instituições democráticas e para fazer cumprir as obrigações de boa-fé objetiva e de segurança que devem estar na base de todas as relações jurídicas.
Nesse sentido, os provedores de aplicações na Internet que atuem no Brasil devem observar as prescrições do Código de Defesa do Consumidor, do Marco Civil da Internet, assim como das autoridades constituídas, inclusive cumprir as ordens emanadas do Poder Judiciário.
Portanto, considero sim inconstitucional e ilegal a resistência do Telegram, ou de qualquer outra empresa que atue no Brasil, em manter um representante legal com poderes para receber intimações e citações judiciais e para fazer a interlocução com as autoridades nacionais, como já disse no post publicado em janeiro deste ano – Eleições 2022 – Bloqueio de aplicações na Internet.
Censura ou defesa das instituições democráticas?
Outro argumento bastante utilizado para criticar a decisão judicial, não só por representantes de forças progressistas e de parte da imprensa, mas também e principalmente pelos que se denominam liberais e bolsonaristas, foi o de que o Ministro estaria promovendo censura e atentando contra a liberdade de expressão.
Neste ponto, discordo das críticas, pois, como disse o Alvaro Borba do canal Meteoro Brasil no Youtube , “o bloqueio é terrível, mas sabe o que é pior? Saber que esse bloqueio tem sim uma justificativa”.
E a prova disso é o fato de que, mesmo a ordem tendo sido direcionada para procuradores do Telegram sem poderes específicos para receber citações e intimações judiciais, a empresa pediu desculpas e prontamente cumpriu as ordens judiciais, inclusive nomeou representante no Brasil, em razão do que o Ministro já revogou a ordem de bloqueio do aplicativo, como já estava expresso na decisão, quando consignou que o bloqueio valeria até o cumprimento dos comandos do STF.
Ou seja, o problema que se apresentou foi de soberania mesmo, ainda que haja quem diga que este conceito não se aplicaria para este caso. Mas o certo é que por meio da decisão judicial, a despeito de seus aspectos questionáveis e até de seus erros materiais (quando menciona empresas envolvidas na cadeia de cumprimento da ordem), os poderes estatais legislativo, judicial e político se impuseram, levando ao cumprimento da lei e do interesse público.
E interesse público porque o Telegram tem se prestado em grande medida para divulgar informações falsas no campo político, mas também no campo da saúde pública, discursos de ódio e crimes, revelando que os serviços prestados pelo provedor não são seguros, contra as garantias do Código de Defesa do Consumidor.
Para confirmar essa afirmação, vale conferir sequência de tuítes de Carlos Affonso Souza (@caffsouza) , que traz informações relevantes sobre o funcionamento do Telegram.
Portanto, não considero que a decisão do Ministro signifique censura; mas sim ato de enforcement para fazer valer o Estado Democrático de Direito, vindo no sentido de restaurar e garantir nossa soberania, à qual o Telegram está sujeito por explorar atividade econômica no país.
O rompimento do equilíbrio democrático é que representa riscos a direitos fundamentais e podem empoderar forças fascistas, que têm usado muito bem da tecnologia para enfraquecer e golpear governos democráticos, como mostram dois livros importantes: Os Engenheiros do Caos, de Giuliano Da Empolli (tradução: Arnaldo Bloch, 1ª. edição, São Paulo; Veestígio, 2019) e Como as Democracias Morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt (tradução: Renato Aguiar, 1ª. edição, Rio de Janeiro, Zahar, 2018).
Pior, os facistas se apropriaram do discurso de defesa da liberdade para, paradoxalmente, nos lançar no caos político e constranger quem defende atos de força, que respeitem o devido processo legal, para ajustar condutas com potencial de causar danos irreparáveis em escala difusa.
A relação do Presidente Bolsonaro com o Telegram
Acredito que muito da resistência do Telegram se deve ao fato de sua relação estreita com o Presidente Bolsonaro. Vejam que já há dois anos, como informa matéria publicada na Folha de São Paulo, o Presidente vem impulsionando provedor: “o acesso da população ao Telegram por meio de órgãos oficiais. Ministérios e instituições públicas oferecem o aplicativo como um canal para serviços”.
Ou seja, o Presidente vem usando a máquina pública para ampliar sua base de mobilização em plataforma sem os mecanismos de controle sobre difeerente do que fazem o Twitter, Facebook e WhatsApp (o que não significa que não tenhamos críticas a fazer quanto às práticas de moderação de conteúdos por estas plataformas), com o claro objetivo de viabilizar sua reeleição.
Por isso sua reação à decisão do Ministro Alexandre de Moraes foi instantânea e agressiva. Aliás, como informa outra matéria do Correio Brasiliense, a decisão judicial serviu para mobilizar ainda mais a base bolsonarista, com crescimento imenso de seguidores do Presidente Bolsonaro e seus filhos. Com a decisão do bloqueio, o Presidente Bolsonaro ganhou mais 190 mil seguidores; “Nesta terça-feira (22/3), às 10h50, Bolsonaro havia ultrapassado 1.276.863”.
O interesse do Presidente Bolsonaro no Telegram fica ainda mais claro quando ele movimenta a Advocacia Geral da União para recorrer contra a decisão do Ministro Alexandre de Moraes, mesmo quando o próprio fundador do provedor imediatamente pediu desculpas e passou a cumprir as ordens judiciais.
Portanto, as preocupações do Tribunal Superior Eleitoral e do Supremo Tribunal Federal quanto ao Telegram estão bem longe de representar censura; ao contrário, fazem justificado sentido, pois entre as atribuições destas Cortes está preservar o equilíbrio do processo eleitoral e a liberdade de expressão.
Por fim, a respostas aos coleguinhas desavisados
Recebi no Twitter algumas mensagens dizendo que meus entendimentos variam conforme a ocasião, fazendo referência ao meu posicionamento contra as decisões no passado que determinaram o bloqueio do WhatsApp. Antes de tudo, agradeço que prestem atenção no que eu digo.
Mas quero ressalvar que as circunstâncias de fato e discussão a respeito dos bloqueios do WhatsApp são bem diversas do que está se discutindo quanto ao Telegram. Nos casos do WhatsApp, que serão julgados pelo Supremo Tribunal Federal, o que se discute é se a resistência do provedor em cumprir ordem judicial determinando a entrega de dados de mensagens criptografadas justificaria ou não a aplicação das sanções previstas no art. 12 do Marco Civil da Internet e se o bloqueio do funcionamento da plataforma é medida que estaria prevista nos incisos relativos a este dispositivo. Sugiro que consultem os processos que estão abertos no sítio eletrônico do tribunal (ADPF 403 e ADI 5527).
O julgamento está suspenso desde maio de 2020, com votos contra o bloqueio da Ministra Rosa Weber e do Ministro Edson Fachin, com base, resumidamente, na seguinte justificativa:
“De acordo com o meu voto, eliminada do ordenamento a interpretação que autorize o acesso excepcional, entendo ser dispensável a interpretação conforme para impedir as ordens de bloqueio por decisões judiciais. Se o Poder Judiciário não pode determinar a interceptação do fluxo, tampouco poderia sancionar eventual descumprimento da ordem.”, disse o ministro.
Ou seja, considerando que as mensagens do WhatsApp são criptografadas de ponta a ponta, as decisões judiciais que mandaram o provedor entregar conteúdos de mensagens são inexequíveis.
Portanto, tratam-se de situações absolutamente diferentes; no caso de WhatsApp a discussão é sobre a legalidade e legitimidade de proteção de mensagens privadas pelo uso de criptografia e no caso do Telegram, a discussão é sobre resistência em cumprir o princípio da boa-fé objetiva e se submeter aos poderes estatais brasileiros.