5 de março de 2023
Neste mês de fevereiro, dias 21 a 23 em Paris, a UNESCO promoveu a conferência “Internet for Trust”, com vistas a encontrar diretrizes globais para a regulação das empresas que prestam serviços digitais, buscando caminhos para o enfrentamento do uso abusivo das plataformas para a desinformação e propagação de discursos de ódio, ilegais e criminosos, que têm trazido efeitos desestruturantes para as instituições democráticas em diversos países, colocando em risco e em situação de grave insegurança quase 3 bilhões de usuários.
Para orientar as discussões, a UNESCO lançou o documento “Diretrizes para regulamentar plataformas digitais: uma abordagem multissetorial para salvaguardar a liberdade de expressão e o acesso à informação” para consulta pública, que apresenta entre seus objetivos o apoio para “o desenvolvimento e a implementação de processos regulatórios que garantam a liberdade de expressão e o acesso à informação ao lidar com conteúdo ilegal e conteúdo que traga riscos significativos à democracia e ao gozo dos direitos humanos”.
O positivo quanto às propostas que emergem das diversas discussões é o consenso de que a definição de regras para o tratamento em escala comercial e global de conteúdos para as mais diversas finalidades – publicidade, propaganda eleitoral, exercício do direito de informação e de informar, entre outras – não pode ficar a cargo exclusivamente das empresas que hoje operam redes sociais, serviços de mensagem e de streaming, com base em sistemas algorítmicos envolvidos por garantias industriais de sigilo e operados para controlar o fluxo de informações orientadas por acordos comerciais visando preponderantemente o lucro.
Porém, os debates e as atuais iniciativas do Governo Lula e de representantes do Supremo Tribunal Federal, como foi o caso do discurso do Ministro Barroso na conferência em Paris, também têm causados preocupações, quando se fala em “flexibilização” das disposições que conquistamos com o Marco Civil da Internet (MCI).
A leitura equivocada do art. 19 do MCI e a responsabilidade das plataformas
O que mais preocupa é a afirmação que tem sido reiterada em vários meios, inclusive por parlamentares oportunistas, que sempre foram contra o MCI, no sentido de que a lei estaria defasada e precisaria ser revista, especialmente o art. 19, que vem sendo, desde a edição da Lei 12.965/2014, interpretado de forma profundamente equivocada e que tem servido de justificativa indevida para que as plataformas deixem de responder por práticas abusivas e ilegais na sua atuação de gerenciamento de conteúdos que circulam em suas redes.
A leitura incorreta que tem sido feita do art. 19 do MCI tem gerado efeitos negativos e graves para a garantia da liberdade de expressão. Entender que este dispositivo limita a responsabilidade dos provedores de aplicações apenas às hipóteses de descumprimento de ordem judicial para remoção de conteúdos significa confundir a culpa por conteúdos ilícitos postado por usuários com a culpa pelos efeitos decorrentes das práticas algorítmicas para gerenciamento de conteúdos, como p.ex. recomendação, redução de alcance, remoção, impulsionamento de conteúdos e suspensão e cancelamento de contas, bem como condutas permissivas do uso de plataformas de mensagens privadas para a difusão em larga escala de desinformação, com o uso ilegal de dados pessoais, atacando a garantia constitucional de dignidade da pessoa humana.
Não se pode confundir OS CONTEÚDOS postados pelos usuários com os ATOS PRÓPRIOS das plataformas, adotados para o controle do fluxo de informações, pelos quais há inequívoca responsabilidade por força de diversos dispositivos legais estabelecidos pelo MCI, Código de Defesa do Consumidor, Código Civil, Estatuto da Criança e do Adolescente, Código Penal, Lei Eleitoral, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais.
Ou seja, quando se trata de identificar responsabilidades decorrentes dos efeitos das práticas comerciais adotadas pelas plataformas, é necessária a aplicação de todo o arcabouço jurídico brasileiro que estabelece ilícitos e as respectivas penalidades que tenham nexo de causalidade com eles; é necessária uma interpretação sistemática de todas essas leis, muito mais aprofundada do que a análise restrita dos problemas que enfrentamos hoje à luz apenas do art. 19.
O art. 19 é resultado de muita discussão realizada de forma ampla, multissetorial e democrática, inclusive porque baseou-se no Decálogo de Princípios de Governança da Internet, editado em 2009, pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, quando trata da inimputabilidade da rede, com a finalidade justamente de garantir a liberdade de expressão e evitar a censura.
A redação do art. 19 é a seguinte e vem complementada pelos arts. 20 e 21:
Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.
§ 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.
§ 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal.
§ 3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais.
§ 4º O juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º , poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.
Art. 20. Sempre que tiver informações de contato do usuário diretamente responsável pelo conteúdo a que se refere o art. 19, caberá ao provedor de aplicações de internet comunicar-lhe os motivos e informações relativos à indisponibilização de conteúdo, com informações que permitam o contraditório e a ampla defesa em juízo, salvo expressa previsão legal ou expressa determinação judicial fundamentada em contrário.
Parágrafo único. Quando solicitado pelo usuário que disponibilizou o conteúdo tornado indisponível, o provedor de aplicações de internet que exerce essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos substituirá o conteúdo tornado indisponível pela motivação ou pela ordem judicial que deu fundamento à indisponibilização.
Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.
Parágrafo único. A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido.
Vejam que a lei é clara; o limite de responsabilidade se aplica apenas para “danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros”; mas se os danos forem decorrentes da ação ou omissão ilegal pela plataforma diante do cometimento de ilícitos e crimes, expondo a vulnerabilidades os usuários das plataformas, a empresa deve responder.
Em outro post aqui no blog, comentando sobre a derrubada da conta de Trump pelo Twitter, apresentei a seguinte pergunta para reflexão:
É pertinente contrapor as garantias de liberdade de expressão às práticas adotadas pelo Twitter e pelo Facebook de remover conteúdos e banir de suas redes sociais os Presidentes Donald Trump e Jair Bolsonaro? (...) Depois de ouvir muitas discussões a respeito de se seria correta e legal a conduta que passou a ser adotada pelas plataformas – mais especificamente o Twitter e o Facebook – de bloquear os posts de Donald Trump que incitavam seus eleitores à manifestações violentas contra o resultado das eleições nos EUA no último dia 6 de janeiro, acredito que as discussões tomaram um rumo nada útil para os processos que estão em curso em vários países do mundo, inclusive no Brasil, de se regular de forma mais intensa os provedores de aplicações de Internet e de se questionar o poder de mercado planetário nunca visto na história conquistado por essas empresas. Criou-se um falso dilema que poderá comprometer o rumo dos debates legislativos hoje em curso Ninguém questionaria condutas repressivas, independente de ordem judicial, de um estabelecimento comercial que impedisse a entrada de alguém empunhando uma arma; ou a repressão de alguém que, dentro de um avião, acendesse um cigarro. Ou seja, o direito à autonomia das empresas de adotarem condutas repressivas contra manifestações inequivocamente ilegais e que ponham em risco a saúde e a segurança da coletividade, a meu ver, não significa que se esteja confrontando ou comprometendo a garantia de liberdade de expressão”.
O que pretendi dizer naquela oportunidade foi que a discussão sobre liberdade na Internet não pode ser feita apenas com base no art. 19, do MCI, ou na Seção 230, do Communications Decency Act, dos Estados Unidos, que, aliás, está em fase de julgamento e possível revisão pela Suprema Corte, neste momento.
Admitir a alteração do art 19 para permitir a derrubada de conteúdos por simples notificação ou, pior, por iniciativa e julgamento exclusivos dos provedores será empoderar ainda mais os prestadores de serviços na Internet, conferindo à iniciativa privada o papel de decidir o que deve e o que não deve ser mantido on line, o que certamente se dará com base em critérios fixados com vistas a proteger seus interesses privados, com danos irremediáveis a liberdade de expressão, viabilizando-se a censura.
Temos de ter muito presente que essas empresas com maior poder de mercado - possuem mais de 2,5 bilhões de usuários no mundo cada uma - são todas estadunidenses e, como têm revelado pesquisas, tendem sempre para o viés de direita, causando danos reiteradamente e não por coincidência às instituições democráticas em diversos países.
Precisamos de lei e de mecanismos que garantam transparência
O caminho para conter os efeitos deletérios decorrentes do poder de mercado das plataformas, que são terrenos férteis para a desinformação, passa pela imposição de obrigações de transparência quanto às suas práticas comerciais, entre outras medidas já expressas no Projeto de Lei 2630/2020, que estabelece sobre Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.
O PL já passou por ampla discussão e poderá ainda ser aperfeiçoado, especialmente para tirar dois dispositivos que foram incluídos e que impediram que o Brasil tivesse aprovada essa importante lei já a partir de 2022, como comentei aqui no blog no post PL 2630 das fake news e os 2 bodes na Câmara.
Alterar o MCI, que é uma lei principiológica, que tem servido de suporte para o uso e desenvolvimento da Internet no Brasil e que tem sido de modelo para outros países, será um erro enorme, capaz de comprometer o que a Internet tem de melhor, que é ampliar os espaços públicos para a liberdade da expressão, para o direito à informação e para as comunicações.
As obrigações de segurança no Código do Consumidor
Precisamos aplicar as leis existentes e falar de dever de cuidado, como foi colocado pelo Ministro Barroso e diversos participantes da conferência da UNESCO, mas temos de falar muito mais de dever de segurança, como está expresso no Código de Proteção e Defesa do Consumidor. Nesse sentido, sugiro aqui algumas reflexões feitas junto com a Raquel Saraiva no capítulo 12 – Serviços Prestados na Internet – Obrigações e Responsabilidade de Segurança, no livro Compliance no Direito Digital, organizado pelo Professor Marcelo Crespo, editado pela Revista dos Tribunais em 2020.
Ali consideramos especialmente o que está disposto nos arts. 8º e seguintes do CDC, quando tratam da Proteção, Saúde e Segurança e do regime de responsabilidade pelos vícios dos serviços e produtos.
Art. 8° Os produtos e serviços colocados no mercado de consumo não acarretarão riscos à saúde ou segurança dos consumidores, exceto os considerados normais e previsíveis em decorrência de sua natureza e fruição, obrigando-se os fornecedores, em qualquer hipótese, a dar as informações necessárias e adequadas a seu respeito. (...) Art. 9° O fornecedor de produtos e serviços potencialmente nocivos ou perigosos à saúde ou segurança deverá informar, de maneira ostensiva e adequada, a respeito da sua nocividade ou periculosidade, sem prejuízo da adoção de outras medidas cabíveis em cada caso concreto. Art. 10. O fornecedor não poderá colocar no mercado de consumo produto ou serviço que sabe ou deveria saber apresentar alto grau de nocividade ou periculosidade à saúde ou segurança. § 1° O fornecedor de produtos e serviços que, posteriormente à sua introdução no mercado de consumo, tiver conhecimento da periculosidade que apresentem, deverá comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores, mediante anúncios publicitários. § 2° Os anúncios publicitários a que se refere o parágrafo anterior serão veiculados na imprensa, rádio e televisão, às expensas do fornecedor do produto ou serviço. § 3° Sempre que tiverem conhecimento de periculosidade de produtos ou serviços à saúde ou segurança dos consumidores, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deverão informá-los a respeito.
A simples leitura desses dispositivos é suficiente para revelar o quanto as plataformas vêm infringindo suas obrigações de informação e segurança, sem que lhes sejam impostas as devidas responsabilidades, sob o falacioso pretexto do limite do art. 19, do MCI. Nesse sentido, vale a transcrição de trechos do capítulo onde ponderamos o seguinte:
1.1 – Segurança e responsabilidade no CDC Quando falamos de segurança no campo dos serviços prestados na Internet, questões como o respeito aos direitos da personalidade; dignidade da pessoa humana; tratamento isonômico emergem com intensidade, como temos podido constatar com eventos de vazamento de dados, fraudes, desinformação, discursos de ódio, discriminação entre outros ilícitos cometidos por meio das plataformas dos diversos tipos de provedores de aplicações, causando danos em escala abrangente e difusa. E assim se dá na medida em que, como já dissemos antes, os modelos de negócios que predominam na Internet são baseados em dados pessoais, com repercussões para as garantias constitucionais estabelecidas no inc. X, do art. 5º, da CF: ‘são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Sendo assim, um serviço que atenda o requisito da qualidade, que se bifurca em adequação e segurança, passará necessariamente pelo crivo do regime de responsabilidade expresso nos arts. 18 a 25 e arts. 12 a 17, do CDC, respectivamente. Vejamos, então que, de acordo com o art. 20, do CDC, “o fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária” (caput) e, mais, que “são impróprios os serviços que se mostrem inadequados para os fins que razoavelmente deles se esperam, bem como aqueles que não atendam as normas regulamentares de prestabilidade”. Nessa esteira e aplicando-se estas disposições para os casos de serviços prestados por provedores de aplicação, é certo concluir que as empresas que atuarem em desconformidade com as regras de proteção de dados pessoais estabelecidas seja pelo MCI, seja pela LGPD, ou por outras normas que vierem a ser editadas, ou ainda, que descumpram os termos de suas ofertas e contratos ou utilizem práticas abusivas ou ilegais na moderação de conteúdos poderão incorrer na prestação de serviços impróprios, deverão responder nos termos do regime estabelecido pelos arts. 12 a 17 do CDC. Merece destaque, neste ponto, a prescrição no sentido de que “o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos (art. 12) e, mais, que o “serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar (...)” (§ 2º do art. 14).
Portanto, para além de falar em dever de cuidado, mirando de forma equivocada e míope o disposto no art. 19, do MCI, é imprescindível aprofundar a discussão com vistas especialmente no dever de qualidade, segurança e responsabilidade objetiva das plataformas por suas práticas algorítmicas por meio das quais realizam o controle do fluxo da informação para bilhões de usuários, que têm sido impactados negativa e fortemente afetados.