7 de abril de 2022
Ontem a Câmara Federal rejeitou a proposta de inclusão do PL 2630/2020 no regime de urgência. Muito em virtude de o Deputado Orlando Silva – relator do projeto – ter cedido a pressões para inclusão de dois artigos polêmicos, lesivos à democracia e a liberdade de expressão e, mais, descabidos na proposta, pois nada têm a ver com os direitos e valores que originaram os debates iniciados no Senado. O foco deveria ter sido mantido na Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.
Os dois artigos introduzidos no PL depois de ter chegado do Senado na Câmara serviram de pretexto, e em grande medida com razão, para os ataques que a proposta passou a sofrer, especialmente por parte dos principais provedores de serviços na Internet, como Google e Meta/Facebook, que passaram a fazer propaganda desleal, pesada e baseada em desinformação, com o objetivo de ganhar a opinião pública contra projeto.
Os dois problemas que hoje corrompem o PL 2630 são a “extensão da “imunidade parlamentar” às redes sociais e o estabelecimento de um dever geral de remuneração de conteúdo jornalístico, que merece ser discutido em separado, com mais cautela, como bem apontado pela Coalisão Direitos na Rede – coletivo de mais de cinquenta entidades da sociedade civil, acadêmicos e ativistas entre os quais me incluo, na nota de análise e posicionamento a respeito da proposta.
A imunidade parlamentar
Tratando sobre o primeiro bode infiltrado no PL, hoje, na Folha de São Paulo, Conrado Hubner publicou o artigo “Imunidade parlamentar contra o Parlamento – PL das fake news empurra aberração jurídica contra a competição política, apontando o absurdo de se estender a imunidade parlamentar, que diz respeito às atividades relativas ao mandato político, para o contexto de desinformação nas redes.
Importante resgatar o que originou a elaboração e aprovação do projeto de lei a toque de caixa no Senado; foi justamente a atuação abusiva, em larga escala e sem controle pelo Tribunal Superior Eleitoral, dos grupos bolsonaristas nas plataformas, especialmente WhatsApp, Facebook e Youtube, que comprometeu as garantias democráticas e atropelou a Lei Eleitoral no processo de 2018, com a participação determinante de parlamentares, financiados por empresas.
Sendo assim, é no mínimo incoerente que tenham inoculado esse vírus no PL 2630, na medida em que a extensão da imunidade parlamentar para as redes reduzirá drasticamente qualquer viabilidade de enfrentamento efetivo contra os processos de desinformação.
Além disso, a discriminação proposta pelo PL é claramente inconstitucional. A imunidade parlamentar expressa no art. 53, da Constituição Federal diz respeito à responsabilidade por ilícitos civis e penais perpetrados por conta da atividade parlamentar. A redação é a seguinte:
“Art. 53. Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”.
Sendo assim, concordo com Conrado Hubner quando ele diz:
“De fato, a imunidade parlamentar parece dar a parlamentares uma liberdade de expressão turbinada. São invioláveis por suas "opiniões, palavras e votos", proferidos na condição de representantes dentro ou fora dos espaços formais da política. Por conveniência, escondem responsabilidades e limites, também turbinados, que acompanham essa prerrogativa. Essa confusão, deliberada ou não, estratégica ou não, traz grandes perigos para a democracia em tempos de cólera e de peste. Porque a imunidade parlamentar não se confunde com o direito individual de qualquer cidadão”.
Ou seja, é absurdo pensar que conteúdos inverídicos e ilegais postados por parlamentares possam receber tratamento jurídico diverso de outros postados por qualquer outro cidadão usuário da rede e possam passar ao largo das práticas de gerenciamento que se pretende sejam instauradas com os artigos relativos à seção sobre os deveres de transparência e gerenciamento de conteúdos.
Pagamento pelas plataformas por conteúdos jornalísticos
Tão ruim quanto a imunidade parlamentar ou até pior foi a inclusão do art. 38, estabelecendo que:
“Os conteúdos jornalísticos utilizados pelos provedores de aplicação de internet produzidos em quaisquer formatos, que inclua texto, vídeo, áudio ou imagem, ensejarão remuneração às empresas jornalísticas de direitos de autor”.
Sou plenamente favorável a que se discuta mecanismos de financiamento do jornalismo, especialmente neste cenário em que as big techs atuam como oligopólios globais nos mercados das comunicações. Porém não desta forma superficial e açodada e contaminando debate que tem como foco a transparência, como forma de combater a desinformação.
Há aproximadamente dois anos atrás, o Google informou que passaria a investir US$ 1 bilhão “globalmente em parcerias com veículos jornalísticos responsáveis por criar e selecionar conteúdo de alta qualidade para o novo produto”. A nota também dizia que se tratava de um “novo programa de licenciamento de conteúdo que se soma a outros”, com o objetivo de “reforçar o compromisso de longo prazo em ajudar a fortalecer o ecossistema jornalísticos”.
Naquela época publiquei o post “Google, empresas jornalísticas e uma armadilha de US$ 1 bilhão de dólares” e ponderei que as intenções da empresa com aquele projeto estavam claras: a primeira delas era a de se livrar do peso regulatório decorrente do seu enquadramento como meio de comunicação social, como está expresso nos artigos 220 a 224 da Constituição Federal, que implicam em restrições quanto à atuação como monopólio ou oligopólio, limites à exploração da publicidade e definição de programação, entre outras.
Ou seja, seria extremamente vantajoso para o Google lucrar com a produção jornalística, realizando atividade de cunho claramente editorial, por meio de suas práticas algorítmicas de gerenciamento de conteúdos, deixando para as empresas de mídia o peso regulatório das obrigações relativas às normas que regem o setor.
Além disso, o Google passaria, como de fato vem acontecendo, a se consolidar como uma das principais plataformas de concentração do mercado de leitura de notícias na Internet, junto com o Facebook.
Há anos, segundo dados da Alexa – ferramenta da Amazon, mais de 70% dos conteúdos jornalísticos são lidos nestas duas plataformas. Consequentemente, com seus critérios definindo suas práticas algorítmicas de gerenciamento de conteúdos, as empresas vão se firmando como controladoras determinantes do fluxo de informação no Brasil e no mundo. Dada sua dimensão de oligopólios globais nos segmentos de redes sociais, mensageria, mecanismo de busca e de plataforma de vídeos na Internet, passarão a ditar, como aliás já iniciaram a fazer desde 2017, como comentado em outro artigo publicado na Carta Capital e aqui no blog.
Estudo realizado em 2021 – "Infodemia e os impactos na vida digital" pela Kaspersky, em parceria com a empresa de pesquisa Corpa, foi feita com o objetivo de alertar sobre os potenciais riscos à privacidade, reputação e bem-estar, contidos nas redes sociais, que foram intensificados por conta do aumento da transformação digital ocasionada pela pandemia do covid-19” apontou que sete em cada dez brasileiros se informam por redes sociais, como divulgado pelo Canal Tech.
Relevante também outra pesquisa realizada pelo instituto FSB, patrocinada pelo banco BTG Pactual, divulgada no último dia 21 de março, mapeou as principais redes sociais utilizadas na hora de se informar sobre o pleito eleitoral no país. E o resultado mostra que são as big techs que dão as cartas no cenário eleitoral.
É indiscutível, portanto, que essas gigantes transnacionais, com bilhões de usuários em suas plataformas no Brasil e no mundo, têm o objetivo, e como base de seus modelos de negócio, o de ditar o que é “conteúdo de alta qualidade”, reduzindo a visualização do que reputam irrelevante e recomendando e impulsionando os conteúdos com base em seus acordos comerciais e políticos. E o texto do art. 38, do PL acirra esta realidade contra a qual diversos países têm se debatido.
É mais do que razoável concluir que os conteúdos das empresas de jornalismo que contratem com as plataformas receberão tratamento algorítmico que lhes darão destaque, ênfase, relevância e maior alcance, conferindo um poder de influência arbitrário e descolado dos movimentos políticos orgânicos emergentes da sociedade, conferindo um poder ainda maior dessas empresas sobre o fluxo de informações, descolado do interesse público e da defesa das instituições democráticas.
E, nesse ambiente, empresas jornalísticas ou sites e canais de notícias alinhados com as forças de esquerda ou progressistas de modo geral serão afetados pelo potencial discriminatório das práticas algorítmicas das plataformas reforçadas pelo art. 38 do projeto.
As plataformas dominantes e americanas na origem terão a mesma disposição de contratar com a Carta Capital, a Revista Brasil de Fato, a Rádio Brasil Atual, a TVT, o The Intercept, a revista Fórum, DCM, Meteoro, Brasil 247, GGN, entre outros jornais e canais de linha progressista ou de esquerda, que já têm hoje como a Rede Globo e a TV Bandeirantes, por exemplo?
É importante considerar que estamos falando de empresas privadas e que não poderão sofrer interferências regulatórias que lhes imponham com quem contratar. E nesse sentido, o art. 38 do PL desconsidera que essas empresas americanas dominam os mercados informacionais relevantes, a ponto de todos os organismos dos poderes executivo, legislativo e judiciário, em todas as esferas da federação possuírem canais no YouTube, contas no WhatApp, Facebook etc ..., por exemplo, o que corrobora o entendimento de que suas práticas de gerenciamento de conteúdos devem, sim, ser alvo de regulação estatal.
E é contra estes aspectos regulatórios relativos à transparência, responsabilidade e sujeição a diretrizes para o gerenciamento de conteúdos que as plataforma se insurgem na verdade.
Perde a sociedade, perde a democracia - Alto risco para as próximas eleições
Ou seja, a inconveniência dos dois bodes incluídos no projeto – com intuito malicioso ou não – é indiscutível e já nos trouxe um prejuízo enorme, pois evitou que garantias fundamentais que a proposta traz para o enfrentamento da desinformação já estivessem aprovadas.
Mas o que é inconveniente para a sociedade e para a democracia cai como uma luva para as big techs e para os grupos fascistas e bolsonaristas e termina por desinformar a sociedade. Hoje ouvi representantes da mídia democrática chamando o PL 2630 de PL da Rede Globo, o que nem de longe faz justiça a todo o empenho da sociedade civil, como é o caso da Coalisão Direitos na Rede, que participou intensamente da construção do texto na Câmarra, e do próprio Deputado Orlando Silva, no esforço de articular as partes interessadas para o debate público e de levar o projeto ao regime de urgência.
Como bem destacou a Bia Barbosa, representante do terceiro setor no Comitê Gestor da Internet no Brasil, em manifestação que publicou no Twitter: “O Brasil precisa SIM de uma lei democrática para regular as plataformas digitais”.