Metaverso – Um debate ético, econômico e político

Metaverso – Um debate ético, econômico e político

5 de junho de 2022

No último dia 2 participei de workshop no 12º Fórum da Internet no Brasil, organizado pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) por iniciativa da advogada Mariana Vidotti. A perspectiva colocada para os participantes da mesa foi: Metaverso - uma análise técnica, regulatória e jurídica: a rede e o ordenamento jurídico do Brasil estão preparados? que pode ser acessado por este link, assim como todas as outras mesas que ocorreram durante o FIB XII.

A despeito de o metaverso ainda estar em estágio inicial, é fundamental aproveitarmos esta oportunidade para refletir sobre o quanto e de que maneira vamos querer nos relacionar com esta tecnologia, dadas as potenciais implicações éticas, econômicas, políticas e sociais que ela poderá nos trazer.

Foi com vistas nestas preocupações que organizei minha participação na mesa do workshop, ponderando que o metaverso, que se constitui como espaço virtual que mescla realidade aumentada com realidade virtual e se apresenta como uma nova camada da realidade, poderá nos levar a novas relações pessoais, sociais, econômicas e políticas REAIS.

Metaverso e o poder da Bigtechs estadunidenses

Essa nova tecnologia, na medida em que for avançando, vai aprofundar o poder de influência das Bigtechs, que hoje já exploram de forma dominante os principais serviços ofertados na Internet, no desenvolvimento social e cultural da humanidade, dada a quantidade de usuários em suas plataformas; Facebook e Google possuem hoje perto de três bilhões de usuários cada uma. Devemos também acompanhar de perto a Microsoft, que vem fazendo fortes investimentos em óculos virtuais. Por isso há quem diga que essa nova etapa de evolução de serviços na Internet tem sido vista como a 4ª. Revolução Industrial.

Ocorre que as leis que temos hoje regendo as relações que mantemos com os provedores de serviço na Internet, tais como a previsão na Constituição Federal da dignidade da pessoa humana como fundamento da República, Código de Defesa do Consumidor, Marco Civil da Internet, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, Estatuto da Criança e Adolescente e o Código Penal não dão conta de nos proteger nesse novo universo, dado o aprofundamento da vulnerabilidade a que ficaremos expostos e o desequilíbrio de forças que caracterizam a relação que mantemos com as Bigtechs, que se desenvolveram durante os últimos 35 anos em economias marcadas pelo neoliberalismo, com baixa ou quase nenhuma regulação e controle estatais.

Essas vulnerabilidades se elevam quando se considera o grau de imersão dos usuários, especialmente crianças e adolescentes, nesses novos ambientes orientados por uma lógica capitalista voltada para o lucro e com baixíssimo compromisso com a ética, transparência e com o interesse público, como temos assistido durante os debates sobre regulação de plataformas e nas reiteradas condenações dessas empresas nas cortes europeias e americanas por abuso de poder econômico e desrespeito a informação e às leis de proteção de dados. Isso sem falar na baixa capacidade de os usuários compreenderem e de estarem preparados para entender as novas tecnologias e exercerem com senso crítico seus direitos digitais.

Vejam o ataque desleal que Meta/Facebook e Google passaram a fazer contra o PL 2630, o chamado PL das fake news, que busca regular Transparência, Liberdade de Expressão e Responsabilidade na Internet. Têm sido atacadas especialmente as regras de transparência sobre as práticas algorítmicas que sustentam o modelo de negócios dessas empresas voltadas para o marketing explorado com base na formação de perfis, muitas vezes realizada de forma abusiva e pouco ética, como revelou Frances Haugen, ex-funcionária do Facebook.

Ou seja, não contamos hoje com ferramentas que ponham limites suficientes nas práticas algorítmicas para a formação de perfis e no uso de nossos dados para a interferência nos fluxos de informação e modulação de comportamento nos campos econômico, social e político. Mesmo a União Europeia, que já está bem mais avançada no caminho regulatório sobre inteligência artificial e que já tem uma proposta de lei marcada pelas garantias da ética como ponto central para a governança dessas novas tecnologias – o Digital Service Act, prevista para vigorar a partir de 2024, conta com instrumentos capazes de conferir governança efetiva sobre a exploração de vulnerabilidades cognitivas diante dos riscos reais que a datificação de experiências humanas e seu uso para fins comerciais e políticos implica. Ainda não temos instrumentos efetivos que possam tornar esses serviços seguros, nos termos do Código de Defesa do Consumidor e em termos gerais.

Ponderações da Shoshana Zuboff e Eugeny Morozov

Por esses motivos acredito que as ponderações de Shoshana Zuboff em sua obra Big Other: Capitalismo de Vigilância e Perspectivas para uma Civilização de Informação e em palestra de 2020, Eugeny Morozov, no livro Big Tech – A Ascenção dos Dados e a Morte da Política e Cathy O’Neil em Weapons of Math Destruction: How Big Data Increases Inequality and Threatens Democracy, a respeito dessas novas tecnologias e o quanto devemos evita-las devem ser seriamente consideradas, pois revelam a contradição existente hoje entre a possibilidade de governança real sobre a atuação das Bigtechs, que ocuparam a Internet concentrando mercados, apesar do caráter público da Internet, e a apropriação por intermédio dessas empreesas estadunidenses pelo capitalismo na sua versão ultra-neoliberal.

Segundo Shoshana as Bigtechs descobriram que a experiência humana e o que fazemos em nossas próprias vidas, nosso comportamento, nossas experiências podem ser tomadas sem nosso conhecimento, traduzidas em dados comportamentais, que se transformam em ativos proprietários de custo zero para essas empresas, com o objetivo de, com o uso de Inteligência Artificial, desenvolver previsões sobre o nosso comportamento como indivíduos, como grupos e como populações. Essas previsões são vendidas em um novo tipo de mercado, que Shoshana chama de Human Future Market, porque as empresas negociam previsibilidade sobre nossos comportamentos e como se pode interferir e modular nossas condutas, desejos, escolhas e formação de posições políticas.

Jack Goldsmith e Tim Wu, no livro Who Controls the Internet? mostram que vivemos em uma era em que a tecnologia tornou mais fácil do que nunca transportar capital, bens e serviços além das fronteiras nacionais e ao redor do mundo, o que tem seus aspectos positivos. Contudo, advertem também que a globalização associada ao desenvolvimento dos serviços prestados na Internet, que tem sido vista como catalisador essencial da globalização contemporânea, diminui a relevância das fronteiras, dos territórios e localização e, assim, mina o papel dos Estados-nação territorial como a instituição central para governar os assuntos humanos, bem como os mecanismos jurídicos voltados a garantir direitos fundamentais. Ou seja, reduz nossa capacidade de exercer soberania sobre as regras de proteção de dados pessoais.

Então, neste mundo marcado pelo Capitalismo de Vigilância, como defende Shoshana Zuboff e pelo Cativeiro de Plataforma, como nos propõe Morozov, todo cuidado é pouco nos processos de desenvolvimento e próximas etapas dos serviços prestados na Internet. Morozov, comenta sobre como nossos direitos à intimidade e privacidade se tornaram um estorvo para o livre comércio. Segundo ele: "a verdadeira natureza da aliança oculta entre o neoliberalismo e o Vale do Silício se revela por inteiro nas discussões correntes a respeito do TTIP, o polêmico acordo de liberalização do comércio entre os Estados Unidos e a Europa, assim como dos seus dois irmãos, o TISA e o TPP”.

Para corroborar a fala de Morozov, vale citar que o Tratado de Parceria Transpacífico (TPP) de outubro de 2015 que, apesar da retirada dos EUA em 2016, continua a ser referência de marco regulatório para novos acordos de comércio e que traz disposições quanto a dados pessoais, podem colidir em grande medida com legislações nacionais de proteção de dados pessoais, como por exemplo quando estabelece que: “Cada parte deverá permitir a transferência transfronteiriça, por meios eletrônicos, incluindo informações pessoais”. Ou o Trade in Services Agreement (TISA) do qual consta que “nenhuma parte pode impedir que um fornecedor de serviços de outra parte transfira, acesse, processe ou armezene informações, incluindo informações pessoais, dentro ou fora do território da parte, onde essa atividade é realizada em conexão com a conduta do fornecedor do serviço”. Ou o NAFTA 2 (USA, Mexico e Canadá de 2018), que garante o sigilo para sistemas algorítmicos e códigos fonte, em contraposição à demanda por transparência, acountabilitty e governança sobre esses sistemas. Temos, no caso específico do Brasil, o acordo com o Chile, assinado em outubro de 2018 que relativiza as obrigações de neutralidade da rede, estabelecidas pelo Marco Civil da Internet, como instrumento fundamental para a manutenção da arquitetura aberta e para a garantia do caráter democrático da rede.

Temos de reconhecer, então, o enorme desafio que se coloca hoje caso o uso de metaversos avance. Como tornar efetivos direitos que se opõem aos interesses econômicos preponderantes seja dos EUA no jogo da geopolítica, seja diretamente das empresas dominantes americanas nos ambientes de negociações para o livre comércio, de modo a proteger os direitos da personalidade, a autonomia da vontade, a dignidade da pessoa humana e, acima de tudo, nossa liberdade e democracia?

É nesse cenário que podemos afirmar que os princípios apresentados recentemente pela Meta, por exemplo, propostos para operar o Metaverso são absolutamente pueris e inadequados ao grau de potencial de danos que se apresentam, dados os riscos a que estamos expostos com a exploração capitalista do Metaverso. Essa discussão precisa ser feita com vistas na política, na economia e nos direitos sociais e fundamentais, pois o debate meramente regulatório digital nos coloca em posição de ingenuidade que não cabe diante do evidente objetivo das empresas dominantes americanas de construírem o que Morozov chama de “cerca invisível de arame farpado” ao redor de nossas vidas. Elas "prometem mais liberdade, mais abertura, mais mobilidade; dizem que podemos circular onde quisermos. Porém, o tipo de emancipação que de fato obtemos é falsa; é a emancipação de quem foi libertado, mas continua usando uma tornozeleira”.

Sairemos do risco da vigilância estatal para o da vigilância e poder de empresas privadas que frequentemente se aliam a governos para transferências de dados, como é o caso das principais empresas americanas com a NSA.

Fosso digital e discriminação

Não bastassem as inseguranças jurídicas que ameaçam nossos direitos da personalidade, também não podemos deixar de lado o fato de haver ainda milhões de brasileiros ou sem qualquer acesso ou com acessos precários a Internet. Sendo assim, caso o uso de metaverso mais intenso nas relações de trabalho, educacionais, contratuais, culturais entre outras significará o acirramento do fosso digital que existe no Brasil, deixando de lado especialmente pobres, pretos e mulheres segregados, como já assistimos durante a pandemia.

Portanto, posicionamentos prematuros e ingênuos no sentido de que temos lei suficientes para eliminar os riscos discriminatórios e de segurança a que estaremos expostos no prometido metaverso, como tem anunciado o Meta/Facebook, são desaconselhados.

Toda a atenção e reflexões são aconselháveis neste momento em que ainda podemos, de alguma forma, trabalhar para colocar limites na atuação das Bigtechs e seus metaversos. Tratar esse tema exclusivamente pelo aspecto regulatório poderá representar danos irreversíveis em larga escala.

Quero por fim recomendar que assistam a entrevista no programa Opinião da TV Cultura com o Doutor em Sociologia e Professor Andre Lemos da Universidade Fderal da Bahia e o Professor Rafael Zanatta, Diretor do Data Privacy Brasil a respeito dos riscos do metaverso ( https://youtu.be/CxgRiWbNfzA )