16 de março de 2024
Eu, Paloma Rocillo, do Instituto Iris e Polinho Mota, do data_labe, por estarmos juntos na luta pela democratização do acesso a Internet, atuando na Coalizão Direitos na Rede (CDR), escrevemos artigo publicado dia 6 de março no Le Monde Diplomatique Brasil. Tratamos sobre o modelo preponderante de acesso a Internet no Brasil, que acontece pela rede móvel, com planos pré-pagos, na modalidade de franquias (baixíssimas - média de 10 Gb/mês), com bloqueio ao final do pacote de dados, associadas ao zero rating, com a quebra claramente ilegal da neutralidade da rede, privilegiando o tráfego dos pacotes do Facebook, WhatsApp e Instagram, contribuindo para o acirramento do abismo digital perverso entre a Internet dos ricos e a dos pobres.
Esse acesso limitado e precário é uma das grandes razões para o atual cenário de propagação de desinformação. E o mais assustador é o silêncio dos órgãos como a Secretaria Nacional do Consumidor e de Direitos Digitais, do Ministério da Justiça e da Secretaria de Políticas Digitais, da Presidência da República, quanto ao pedido formal apresentado por entidades que integram a CDR ainda em 4 de janeiro de 2023, por meio do qual requeremos a adoção de medidas para adequar as práticas comerciais das operadoras de conexão a Internet às garantias que conquistamos com a Constituição Federal, com o Código de Defesa do Consumidor e com o Marco Civil da Internet, que impõem ao Estado a Defesa do Consumidor, a continuidade na prestação dos serviços essenciais e a neutralidade da rede, que vêm sendo violadas reiteradamente, desde 2015.
Diante do silêncio das autoridades, a CDR deflagrou no ano passado a Campanha #Liberaminhanet e vamos continuar a atuar junto ao Ministério da Justiça para evoluirmos nas garantias da liberdade de expressão, direito à informação e democratização das comunicações no país.
Segue o texto:
Desde 2016, o Brasil vive sob a sombra de campanhas de desinformação política que influenciam como os eleitores escolhem suas pautas e candidatos. Quantos de nós chegaram a sair de grupos de aplicativos de mensagem online porque não aguentavam mais um tio que todo dia enviava fake news sobre uma suposta distribuição de mamadeiras ou prêmios Nobel que nunca foram concedidos?
Muitas pesquisas têm apontado que grupos online são canais de intensos fluxos de consumo e distribuição de informação política. O que ainda não está sendo debatido da forma que deveria é a relação direta entre essa circulação de desinformação e o modelo de oferta de acesso à internet praticado no Brasil. Se estamos falando de um problema relacionado à comunicação, precisamos pensar quais são as estruturas que viabilizam tal comunicação. Dados da TIC Domicílios[1], produzida pelo CETIC.br, apontam que seis a cada dez usuários de internet no Brasil acessaram a rede exclusivamente pelo telefone celular (62%). Entre aqueles com telefone celular, 64% haviam contratado um plano pré-pago e 34% um plano pós-pago. Ou seja, uma estrutura central para a comunicação da população brasileira atualmente é a internet móvel.
É também desde 2016 que as operadoras telefônicas oferecem o atual modelo de franquia de dados móveis, que inclusive tem preços proporcionais mais caros do que pacotes de conexão fixa como a fibra óptica. O modelo funciona da seguinte maneira:
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A base do modelo de franquia de dados: as operadoras disponibilizam uma quantidade limitada de dados de internet para uso dentro de um determinado período de tempo
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A forma de contratação: em geral, o serviço é adquirido a partir da compra de quantidades específicas de dados por um valor fixo (os planos pré-pagos)
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O uso: quando a franquia contratada é totalmente usada, o acesso à internet é cortado
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A estratégia de venda: existem acordos entre as operadoras de telecomunicações e algumas plataformas para que determinados aplicativos continuem funcionando depois do fim da franquia, sejam eles de mensagens, redes sociais, entre outros.
Compreendida a estrutura, vamos ao seu problema. A estrutura desse modelo baseado em franquia parte de um pressuposto de escassez, no qual os acordos comerciais passam a ser um bote de salvação para quando a franquia terminar. Assim, os acordos comerciais com apenas algumas plataformas transformam a internet – que é livre e gigantesca – em um microcosmo de duas ou três empresas, com predomínio principalmente de aplicações da META (Facebook, Instagram e WhatsApp), que são umas das principais plataformas que concentram campanhas de desinformação, como tem acontecido nas últimas eleições e durante a pandemia de COVID-19.
Assim, quem está refém dos pacotes de dados móveis que restringem o acesso à internet ao uso de apenas alguns aplicativos não vai conseguir verificar se as informações que lhes são direcionadas pelos sistemas algorítmicos das plataformas são verdadeiras ou não, tampouco acessar um portal de notícias e buscar o tema relacionado. Presos dentro de um sistema de informação e sendo bombardeados por mensagens revestidas com roupagem de jornalismo, por exemplo, altamente financiadas, os brasileiros vivem num cenário em que uma mentira pode ganhar status de verdade.
O combate à desinformação é possível e diversas estratégias podem ser utilizadas para isso, como a checagem de informações e de outras fontes estimuladas pela ONU na Campanha Pauses; ou ainda, no investimento em educação midiática. Entretanto, o combate à desinformação pode morrer na praia se o ecossistema de comunicação, cujo controle sobre o fluxo de informações está nas mãos das Big Techs, não possibilita os meios de aplicação das estratégias necessárias, como o acesso ilimitado à internet que viabilize a pluralidade de fontes.
LEGISLAÇÕES VIGENTES APONTAM ILEGALIDADE NO MODELO ATUAL DE FRANQUIA DE DADOS MÓVEIS
Além de ser uma demanda para o enfrentamento à desinformação, a necessidade de mudança do modelo de franquia para acesso à internet também é uma medida para que a legislação brasileira já existente seja respeitada. Nossa legislação estabelece que o acesso à internet é um serviço essencial, universal e ainda um direito humano reconhecido pela Organização das Nações Unidas desde 2011. Esta definição está expressa nos artigos 7º, IV e 9º, § 3º do Marco Civil da Internet e no artigo 22 do Código de Defesa do Consumidor. Além disso, a própria Constituição Federal estabelece que a ordem econômica deve estar voltada para a redução das desigualdades e para o respeito aos direitos do consumidor, atribuindo ao Estado o poder de regular e fiscalizar empresas públicas e privadas, em seus artigos 170 e 174.
Atualmente, acessar a internet é vital e imprescindível para o exercício da cidadania. À medida que a tecnologia evolui, o acesso restrito escancara e amplia as desigualdades sociais. É frequente que atores e atrizes em cargos políticos mobilizem os dados de acesso à internet no Brasil para mostrarem como a conectividade no país já avançou muito. Quando olhamos para alguns dados da TIC Domicílios, podemos ter essa mesma percepção, afinal, 81% dos brasileiros são usuários de Internet, segundo a pesquisa. Mas uma análise mais dedicada aos indicadores do CETIC.br mostram que esse acesso ainda é muito precário, classista e elitizado. A apropriação tecnológica ainda é uma realidade distante no Brasil, onde desses milhões de usuários, apenas 26% dos indivíduos postaram na internet textos, imagens, fotos, vídeos ou músicas que criaram.
Essa forma de disponibilizar acesso sem cobrança adicional por meio de um aplicativo é chamada de zero rating e seu impacto é tão prejudicial que já foi proibido na Europa. O zero rating é um arranjo comercial que privilegia determinados aplicativos em detrimento de outros, ferindo um princípio central da internet, a neutralidade da rede, segundo o qual todo o tráfego na internet deve ser tratado de forma igualitária e sem discrirminação por conteúdo, origem, destino, serviço, terminal ou aplicação.
Um ponto importante é que o princípio da neutralidade da rede não é algo que acadêmicos valorizam exclusivamente a nível teórico. É um princípio que, segundo a legislação brasileira, deve ser observado como regra. Qualquer prática de violação a esse princípio deve ser uma exceção. As situações excepcionais devem ser acompanhadas pela Anatel, conforme artigo 5º do Decreto 8.7716/15, que regulamenta o Marco Civil da Internet. Entretanto, vivenciamos mais uma situação de ilegalidade: a quebra da neutralidade tem sido a regra, e a Anatel não tem acompanhado as situações de excepcionalidade.
GRUPOS SOCIALMENTE VULNERÁVEIS SÃO OS MAIS PREJUDICADOS PELO ACESSO RESTRITO À INTERNET
Talvez, você leitor, nunca tenha sofrido por depender de um serviço tão precário e com efeitos tão perversos, porém, cerca de 80% dos usuários das classes C, D e E acessam a internet exclusivamente pela rede móvel e por meio dos planos pré-pagos. As franquias, segundo as pesquisas do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), se esgotam no 21º dia no mês e, a partir daí, o acesso é bloqueado, permitindo apenas o tráfego dos pacotes de dados de poucas empresas, como as aplicações da Meta, TikTok e Google. Estamos falando da maioria da população brasileira que hoje está refém dessa prática ilegal, com consequências determinantes para o enfraquecimento de nossas instituições democráticas.
Uma pesquisa realizada pelo Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS) mostrou como comunidades como quilombos, assentamentos, favelas, migrantes e indígenas em contextos urbanos sentem os impactos negativos da conexão móvel no seu dia a dia. “Boa parte dos meus irmãos usa celular de conta, pré-pago. Daí é difícil porque a gente manda uma mensagem séria e chega três dias depois. ‘Ah, hoje tem crédito’ e entra todas as mensagens que estão atrasadas”, relata Eni Carajá, indígena Carajá que vive em contexto urbano. A liderança acrescenta que, em geral, os aplicativos de mensagem são a única forma de comunicação nos territórios que têm infraestrutura de internet e oferta de serviços mais precária.
Depender de apenas uma forma de estar conectado pode representar uma vulnerabilidade para o ecossistema de informação nacional. Pessoas com menor poder aquisitivo muitas vezes dependem de estarem em um ambiente com conexão fixa e wi-fi para realizarem suas atividades, como relatou Maria Victória Gonzalez.
“Às vezes, eu coloco 15 reais, quando eu tenho que ir para faculdade ou para algum lugar. Às vezes não dá para o mês inteiro, depende. Esses planos de 50 reais não dá. A gente trabalha aqui com Wi-fi e quando vai sair a gente carrega”, conta a integrante do Coletivo Cio da Terra, formado por mulheres migrantes na região metropolitana de Belo Horizonte, Minas Gerais.
Ainda estamos longe de termos um Brasil realmente conectado, principalmente quando analisamos de forma regional. Os dados da TIC domicílios relativos a 2023 revelam que as regiões Norte e Nordeste possuem os piores índices de conectividade. No cenário nacional, 62% dos domicílios que estão conectados possuem conexão via fibra óptica, enquanto 16% dos domicílios conectados são via rede móvel. Na região Norte e Nordeste, a proporção de domicílios conectados com rede fixa é de 58% e 57%, respectivamente, abaixo da proporção nacional (figura 1).
Na região Norte, que historicamente possui menores investimentos em infraestrutura de rede fixa, o índice de domicílios conectados por conexão móvel é 27% maior que a porcentagem nacional. Isso revela que as populações desses territórios podem não ter outra opção de conexão a não ser a móvel, o que favorece sua exposição à desinformação e a todo o cenário de baixa conectividade.
CAMPANHA #LIBERAMINHANET ARTICULA PAUTA JUNTO A ÓRGÃOS PÚBLICOS E SOCIEDADE CIVIL
A temática do direito ao acesso à internet é uma entre as diversas pautas defendidas pela Coalizão Direitos na Rede (CDR), que articula mais de 50 organizações da sociedade civil em prol dos direitos digitais. Em 2023 a CDR lançou a Campanha #LiberaMinhaNet, uma iniciativa para explicar o contexto da franquia de dados, suas incongruências e soluções possíveis.
A mobilização junto à sociedade civil e à imprensa caminha em paralelo à articulação em Brasília. A coalizão encaminhou um pedido administrativo ao Ministério da Justiça e à Secretaria Nacional do Consumidor em janeiro de 2023, no qual solicitava a revisão da prática do modelo de franquia de dados em curso no Brasil. Até agora os órgãos não se pronunciaram diante de um problema que ganha maiores proporções com a chegada do ano de eleições municipais. A inação do Governo surpreende o campo ativista, visto que a candidatura eleita foi impactada de forma significativa por campanhas de desinformação eleitorais e ainda sofreu uma tentativa de golpe logo no início do mandato. Vale acrescentar que, durante a campanha eleitoral, o próprio presidente Lula afirmou que uma de suas prioridades de governo seria a melhoria da conectividade no país, tendo feito menção expressa ao fim da limitação de acesso móvel.
Com o Brasil na presidência do G20 e a proximidade das eleições municipais, revisitar o modelo baseado em franquia associada a bloqueio do acesso à internet e tarifa zero para aplicações da Meta – nas quais a desinformação trafega de forma massiva – nunca foi tão relevante. Primeiro porque, em 2014, o Brasil ocupava posição pioneira no campo da Governança da Internet, desenvolvendo debates e regulações próprias, efetivas e contextualizadas às nossas necessidades, como é o caso do Comitê Gestor da Internet no Brasil – o CGI.br e o Marco Civil da Internet. Nos anos subsequentes, nossa notoriedade no campo foi atravessada por outros elementos. Contudo, temos a oportunidade de aproveitar o foco internacional no país em razão do G20 para fortalecer nossos compromissos com o combate à desinformação e com a ampliação da conectividade significativa, voltando à posição de vanguarda e referência global no tema.
Em segundo lugar, as eleições municipais são, historicamente, um teste para as eleições gerais. Assim, o volume gigantesco de propaganda eleitoral que irá circular no pleito deste ano impossibilita que apenas a Justiça Eleitoral seja um agente de combate à desinformação. Os próprios usuários precisam ter condições para avaliar os conteúdos e atuar como agentes de enfrentamento a uma prática tão danosa para a democracia. Entretanto, diante do acesso tão restrito à internet, a atuação cidadã do usuário fica prejudicada.
Alternativas realistas para melhorar o acesso à internet no Brasil são possíveis e já estão sendo pautadas pela sociedade civil. O primeiro passo é exigir que o Poder Executivo, em diálogo com as empresas e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), elabore e implemente políticas públicas voltadas para a universalização das infraestruturas de redes que dão suporte à internet, garantindo que recursos públicos, como é o caso do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações, sejam utilizados para contemplar efetivamente as áreas remotas e as periferias dos grandes centros urbanos.
Outra medida importante é que as autoridades competentes reconheçam e façam valer o princípio da continuidade na prestação do serviço e a neutralidade da rede como direitos fundamentais para a redução do abismo digital que marca a realidade brasileira. Ademais, é necessário estabelecer medidas que garantam a neutralidade da rede e que assegurem que o acesso à internet seja tratado como um serviço essencial e universal, não sujeito a interrupções arbitrárias.Diante deste grave quadro de fosso digital e desinformação massiva, adequar os modelos de exploração comercial do serviço de acesso à internet no Brasil à legislação brasileira é uma necessidade urgente para garantir que todos os brasileiros possam desfrutar dos benefícios da conectividade digital, democratizando os processos informacionais.
Flávia Lefèvre é membro do Conselho Consultivo do Instituto NUPEF. Paloma Rocillo é diretora do Instituto de Referência em Internet e Sociedade (IRIS). Polinho Mota é coordenador de dados do data_labe
[1]Survey on the use of information and communication technologies in Brazilian households : ICT Households 2022 / [editor] Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. — 1. ed. — São Paulo : Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2023