18 de março de 2024
Motivada pelas críticas direcionadas aos novos dispositivos editados pelo Tribunal Superior Eleitoral, por meio da Resolução 23.610/2019 com a redação alterada pela Resolução 23.732/2024, que tratam sobre propaganda eleitoral, achei importante fazer um contraponto para destacar a importância dessas novas regras a serem aplicadas durante as eleições, que estão respaldadas pelo inc. VI, do art. 3º, do Marco Civil da Internet, pelo parágrafo único do art. 927, do Código Civil e pelos arts. 14 e 20, do Código de Defesa do Consumidor.
Entendo que as novas regras, especialmente os dispositivos do art. 9º-E, transcrito abaixo, são uma evolução na compreensão de como se deve interpretar o art. 19, do Marco Civil da Internet, que especifica as hipóteses de responsabilidade das plataformas quanto a danos causados por conteúdos de terceiros. As novas regras revelam a interpretação sistemática que o TSE realizou, integrando, como não poderia deixar de ser, as previsões legais que estabelecem as hipóteses de quem explora atividade comercial com potencial de danos em larga escala, garantindo que respondam por seus atos próprios.
Também conversei com Gustavo Conde na live Deep Fake e Eleições no último dia 2 de março sobre esse tema e tratamos deste e outros aspectos indicando que as próximas eleições municipais vão transcorrer em clima bastante violento, o que mais uma vez justifica a atuação firme dos Tribunais Eleitorais. Segue o link para a essa conversa https://www.youtube.com/watch?v=Ibd7BOMBgdk
Art. 9º-E. Os provedores de aplicação serão solidariamente responsáveis, civil e administrativamente, quando não promoverem a indisponibilização imediata de conteúdos e contas, durante o período eleitoral, nos seguintes casos de risco: (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)
I – de condutas, informações e atos antidemocráticos caracterizadores de violação aos artigos 296, parágrafo único; 359-L, 359- M, 359-N, 359-P e 359-R do Código Penal; (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)
II – de divulgação ou compartilhamento de fatos notoriamente inverídicos ou gravemente descontextualizados que atinjam a integridade do processo eleitoral, inclusive os processos de votação, apuração e totalização de votos; (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)
III – de grave ameaça, direta e imediata, de violência ou incitação à violência contra a integridade física de membros e servidores da Justiça eleitoral e Ministério Público eleitoral ou contra a infraestrutura física do Poder Judiciário para restringir ou impedir o exercício dos poderes constitucionais ou a abolição violenta do Estado Democrático de Direito; (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)
IV – de comportamento ou discurso de ódio, inclusive promoção de racismo, homofobia, ideologias nazistas, fascistas ou odiosas contra uma pessoa ou grupo por preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade, religião e quaisquer outras formas de discriminação; (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)
V - de divulgação ou compartilhamento de conteúdo fabricado ou manipulado, parcial ou integralmente, por tecnologias digitais, incluindo inteligência artificial, em desacordo com as formas de rotulagem trazidas na presente Resolução. (Incluído pela Resolução nº 23.732/2024)
Segue o texto publicado em 18 de março deste ano no Outras Palavras
Eleições: por que moderar as plataformas
Num pleito ameaçado por fake news, alguns tentam restringir o papel do TSE e dar “liberdade” às plataformas. As manipulações recentes não ensinaram nada?
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), no último dia 27 de fevereiro, editou novas regras para combater a desinformação, discursos de ódio, ataques às instituições democráticas, entre outras práticas ilegais, durante as eleições, estabelecendo o seguinte no art. 9-E, da Resolução 26.910/ "Os provedores de aplicação serão solidariamente responsáveis, civil e administrativamente, quando não promoverem a indisponibilização imediata de conteúdos e contas, durante o período eleitoral". Este dispositivo tem causado polêmicas, com alegações de que estaria em desacordo com o que dispõe o art. 19, do Marco Civil da Internet. (MCI), pondo em risco a liberdade de expressão e vibializaria a censura privada, ignorando o que está expresso no inc. VI, do art. 3º, da mesma lei, dispondo que um dos princípios para a disciplina do uso da Internet é a "responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei".
Ou seja, o art. 19 deve ser interpretado sistematicamente ao lado do art. 3º, VI, bem como levando em consideração o que está expresso no Código Civil (CC), ao dispor no parágrafo único do art. 927 sobre as hipóteses de responsabilidade objetiva, deixando expresso que: "haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem".
Além da previsão expressa no MCI e no CC de responsabilidade objetiva por parte dos agentes por suas atividades, temos também de levar em conta que a relação que se estabelece entre usuários e as plataformas é de consumo, como já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, ainda em 2014.
Assim, ao se analisar as novas regras do TSE é obrigatório ter em vista o Código de Defesa do Consumidor (CDC) que, no art. 14, estabelece: "o fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos" e deixa expresso no art. 20 que: "o fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária", estando entre estes vícios aqueles que coloquem o usuário em situação de insegurança e vulnerabilidade.
Nesse sentido, impõem-se o reconhecimento do fato de que a natureza das atividades desenvolvidas pelas plataformas, especialmente em períodos eleitorais, trazem em si riscos intrínsecos de dano em larga escala, na medida em que são as responsáveis pelo controle do fluxo de informações e pela moderação de conteúdos, por meio de seus sistemas algorítmicos utilizados para impulsionamento, recomendação, ampliação ou redução de alcance de conteúdos e suspensão de contas de usuários, de rotulagem das propagandas para informar sobre origem de financiamento, uso de técnicas de inteligência artificial e uso de dados pessoais para direcionamento de propaganda.
Para reforçar o cabimento das finalidades anunciadas pelo TSE ao justificar as novas regras que têm sido criticadas, acrescente-se a rapidez com que os conteúdos se esparramam na Internet e a já reconhecida habilidade da ultra-direita em manejar a seu favor este fato. Ou seja, esperar que durante as eleições a remoção de conteúdos ilegais dependa apenas de ordens judiciais é minimizar os efeitos deletérios da divulgação de desinformação e práticas ilegais na Internet.
Isto porque as plataformas, sendo obrigadas como são por força do CDC a prestar um serviço seguro, tendo assumido a tarefa de atuarem como principal palco para os debates eleitorais no país, não podem deixar de ser responsabilizadas por admitir o impulsionamento de conteúdos inequivocamente ilegais, tipificados nas leis brasileiras como a Lei Eleitoral, Código Penal, Estatuto da Criança e Adolescente entre outras.
O histórico de eventos graves ocorridos desde o período do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, a prisão do Presidente Lula, o uso massivo de aplicações de Internet pelas forças anti-democráticas nas eleições de 2018 e 2022, a tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro deste ano, com danos irreparáveis, tal como o prodomínio das representações reacionárias hoje no Congresso Nacional, operando para o retrocesso em diversos campos dos direitos fundamentais, comprometendo o ambiente político no país, são provas incontestáveis de que as recentes regras definidas pelo TSE, além de respaldadas pelo MCI, CDC e CC, estão devidamente motivadas e legitimamente voltadas para a defesa de nossa democracia.
Sendo assim e tendo em vista que, desde a reforma eleitoral ocorrida em 2017 a partir da qual ficou "vedada a veiculação de qualquer tipo de propaganda eleitoral paga na internet, excetuado o impulsionamento de conteúdos, desde que identificado de forma inequívoca como tal e contratado exclusivamente por partidos, coligações e candidatos e seus representantes" (art. 57-C da Lei 9.504/1997), por força do que as plataformas passaram a ser o principal ambiente público para o debate político no Brasil, o que considero um erro que merece ser revisto urgentemente, defendo ser equivocada a interpretação de alguns no sentido de que as regras definidas pelo TSE seriam ilegais, por contrariarem o MCI e por comprometerem a liberdade de expressão.
Com todo o respeito às críticas feitas às novas regras do TSE, precisamos aplicar as leis brasileiras sobre as atividades comerciais desenvolvidas pelas plataformas e deixar de, ingenuamente, comprar o discurso que lhes é muito conveniente, de que só deveriam ser responsabilizadas na hipótese prevista no art. 19, do MCI.