Minirreforma eleitoral abortada e desinformação

Minirreforma eleitoral abortada e desinformação

15 de janeiro de 2024

A Politics é uma revista publicada pelo Instituto NUPEF desde 2008, que traz conteúdos inéditos, com análises, textos de opinião e artigos informativos que ajudam a fomentar o debate sobre as questões ligadas às políticas de comunicação e TICs.

Na edição nº 37 junto com outros importantes artigos, publiquei este, cujo texto transcrevo abaixo, tratando sobre a oportunidade perdida pelas Secretarias envolvidas com direitos e políticas digitais do Ministério da Justiça e da Secretaria de Comunicação, de introduzir mecanismos na lei eleitoral para minimizar os ataques de desinformação que virão com as próximas eleições.

Minirreforma eleitoral abortada e desinformação

Em julho de 2023, tudo indicava que o governo Lula fosse envidar esforços e realizar incidência junto ao Congresso Nacional para adotar medidas regulatórias com o objetivo de reduzir danos para as eleições municipais de 2024, introduzindo dispositivos na minirreforma eleitoral, definindo regras mínimas quanto à propaganda na Internet, como comentei aqui no blog.

Mas, surpreendentemente, as secretarias envolvidas com políticas e direitos digitais do Ministério da Justiça e da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, criadas pela Medida Provisória 1.154/2023, convertida na Lei 14.600/2023, que estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios, tiveram uma atuação reduzida diante da oportunidade para introduzir dispositivos na Lei Eleitoral, por intermédio do Projeto de Lei 4438/2023, que foi aprovado na Câmara Federal e terminou por não ser aprovado no Senado. Isso é incompreensível, tendo em vista problemas graves ocorridos durante as últimas eleições desde 2018, pelo uso abusivo das plataformas de Internet especialmente por candidatos da direita.

É verdade que a Secretaria de Políticas Digitais apresentou sugestões de inclusão de textos, cujo mérito, na minha avaliação, apesar de importantes, passaram ao largo dos temas que reputo mais graves e que mereceriam muita atenção, como indicarei mais adiante. Até porque, como sempre ressaltou o Relator do projeto de lei – Deputado Rubens Pereira Júnior, do PT do Maranhão –, nas audiências públicas do Grupo de Trabalho relativo à minirreforma, o objetivo era tratar de questões consensuais entre os partidos e que temas relativos à desinformação seriam tratados no âmbito dos debates do PL 2630/2020, que trata de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, do que eu discordo, pois a Lei Eleitoral deve trazer dispositivos específicos.

A atuação tímida do governo quanto à possibilidade de emplacar uma minirreforma substancial antes das próximas eleições é injustificável, especialmente diante da constatação que analistas políticos têm feito desde a posse do Presidente Lula, no sentido de que as forças reacionárias derrotadas em 2018 estão em movimento de forte mobilização nas redes para reverter o quadro, pavimentando o campo eleitoral de 2024 com vistas a vencer em 2026, para impedir a reeleição do PT.

A Reforma Eleitoral de 2017

Atribuo muito dos problemas que temos enfrentado durante as últimas eleições à Reforma Eleitoral ocorrida em 2017, quando foram introduzidas na Lei 9.504/1997, que estabelece normas para as eleições, disposições sobre a propaganda na Internet.

A partir da reforma de 2017 ficou “vedado qualquer tipo de propaganda eleitoral paga na Internet, excetuado o impulsionamento de conteúdos, desde que identificado de forma inequívoca como tal e contratado exclusivamente por partidos, coligações e candidatos e seus representantes” (art. 57-C). A lei também equiparou a contratação de “priorização de conteúdos resultantes de aplicações de busca na Internet” (art. 26, § 2º) ao impulsionamento.

Ou seja, a reforma de 2017 atribuiu às plataformas da Meta (Facebook, WhatsApp e Instagram), da Alphabet (Google, YouTube) e do Twitter (hoje X), entre outros, vantagens imensas e inadequadas ao poder de mercado e de influência que estas empresas já exercem, por força do que passaram a desempenhar o papel de principais praças de debate político eleitoral. Este cenário demanda revisão urgente, mas que sequer é cogitada quando se discutem revisões nas leis eleitorais.

Os efeitos deletérios da reforma de 2017 já se revelaram nas eleições de 2018, quando assistimos à utilização das plataformas digitais para a veiculação de intensa campanha de desinformação, com a prática de violações graves a direitos fundamentais e à legislação eleitoral, especialmente o emprego de impulsionamentos pagos por empresas (que pela Lei Eleitoral não podem financiar campanhas) e abuso de poder econômico, pois têm sido gastos milhões em impulsionamentos de conteúdos ilegais.

As lacunas na Lei Eleitoral que desequilibram as eleições

E isto porque as mudanças na lei deixaram lacunas que têm viabilizado a prática de ilícitos com resultados antidemocráticos e inorgânicos para as últimas eleições; por exemplo, o PSL (partido do então Presidente Jair Bolsonaro) na legislatura de 2014 contava com oito deputados e passou para 54 em 2018. Depois das eleições de 2022, a Federação Brasil Esperança, composta por PT, PCdoB e PV conta com apenas 81 deputados; a Federação PSOL e Rede, com 14, sendo que os demais blocos com partidos de direita e centro-direita contam com 418. Ainda que no Senado a situação seja menos desequilibrada, o cenário também é bem difícil.

Para além do papel privilegiado atribuído às “big techs” no cenário de debates políticos eleitorais, em razão do poder inédito e perigoso que vêm demonstrando sobre os fluxos de informação em grande parte do planeta (cada uma dessas plataformas possui entre 1 e 3 bilhões de usuários aderidos aos seus serviços), a lei também permitiu que a propaganda eleitoral possa ser realizada “por meio de blogs, redes sociais, sítios de mensagens instantâneas e aplicações de Internet assemelhadas cujo conteúdo” seja gerado ou editado por “qualquer pessoa natural, desde que não contrate impulsionamento de conteúdos” (art. 57-B).

Mas notem que a lei proibiu impulsionamento de conteúdos por pessoas naturais, o que significa o mesmo que pessoas físicas; mas a lei não proibiu de forma clara e inequívoca que pessoas jurídicas pudessem fazê-lo nas redes sociais.

Ou seja, uma das lacunas que não poderia ter sido esquecida para garantir mais equilíbrio e higidez ao processo eleitoral, e que já deveria ter sido preenchida, é que a lei não considera como propaganda em favor de determinado candidato os conteúdos altamente financiados, recobertos por uma roupagem de jornalismo, mas com fortes e parciais mensagens políticas, que não tenham sido postados diretamente pelas candidaturas ou partidos. Consequentemente, a lei deixa de definir regras específicas para impulsionamentos de conteúdos com teor político promovidos por pessoas jurídicas em geral, revestidos pela roupagem muitas vezes questionável de jornalismo.

A Lei Eleitoral é muito mais clara nesse sentido quando se trata de radiodifusão. Todavia, na Internet temos um campo de indefinição inapropriado e que tem causado muitos problemas, como nos mostraram os processos eleitorais conturbados de 2018 e 2022.

Os impulsionamentos volumosos de canais, que se anunciam como jornalísticos, como o da Brasil Paralelo, ocorridos nas eleições passadas, assim como as práticas de recomendação dos conteúdos da Jovem Pan pelo YouTube, que tiveram um peso bastante importante para a mobilização voltada para a tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023, por exemplo, deveriam estar submetidos a regras claras, de modo a garantir equilíbrio ao processo eleitoral.

Relatórios do Google e Facebook, porém, mostram que o Brasil Paralelo, canal de direita, tendo veiculado conteúdos que beneficiaram Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, liderou de longe o ranking dos maiores impulsionadores; foram mais de R$ 1,8 milhões no Google e R$ 3,0 milhões no Facebook e tudo isso deixou de passar pelo crivo do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Entretanto, tratou-se de clara propaganda eleitoral derramada aos borbotões na Internet que, como reconheceu o Ministro Benedito Gonçalves (TSE), faz parte do ecossistema de desinformação estruturado pelas forças políticas de direita, ao conceder liminar à Coligação Brasil Esperança na ação cautelar ajuizada para denunciar determinados conteúdos do Brasil Paralelo, confirmada pelo Pleno da Corte Eleitoral, servindo de estoque fornecedor de material para ser decupado e disparado massivamente por meio dos aplicativos de mensageria como WhatsApp e Telegram.

É certo que a Resolução do TSE 23.714, de 20 de outubro de 2022, editada no meio do caos de campanhas ilegais, tratando sobre o enfrentamento à desinformação que atinja a integridade do processo eleitoral, de alguma forma buscou dar resposta ao problema decorrente do fato de que a Lei Eleitoral não regulou de forma suficientemente abrangente a propaganda política. Mas, infelizmente, a Resolução teve eficácia reduzida.

O teor da decisão proferida pelo Ministro Benedito Gonçalves do TSE ilustra bem os efeitos da ausência de regras com definições claras sobre o que se considera propaganda política na Internet, como se pode depreender de trecho que transcrevo aqui:

  1. Não se trata, no ponto, de jornais que legitimamente ostentam preferências políticas e que naturalmente se inclinam, em sua leitura crítica dos fatos, a uma determinada corrente. O fenômeno referido tem estreita relação com a produção de notícias falsas orientadas a apresentar uma visão ideológica como se fosse verdade factual. O empreendimento comercial, nesses casos, fica em segundo plano, tornando-se prioritária a possibilidade de influenciar nas escolhas políticas e eleitorais dos cidadãos, inclusive por estímulo à radicalização.

  2. Na hipótese, não se discute, em abstrato, a possibilidade ou não de serem mantidos sites, canais e perfis que pretendam conferir aparência jornalística a conteúdos ideologicamente orientados. O que se examina, concretamente, é a necessidade de inibir ou mitigar os efeitos anti-isonômicos da movimentação de recursos por quatro provedores de conteúdo, mantidos por pessoas jurídicas, que assumiram comportamento simbiótico em relação à campanha midiática do primeiro investigado. (grifo da autora)

  3. Destaco, nesse sentido, que essas empresas: a) possuem canais no YouTube que contam com milhões de inscritos e são fortemente monetizados; b) já figuraram em ações judiciais ou inquéritos (STF e TSE) destinados a apurar a disseminação de fake news com impacto no processo eleitoral; c) funcionam como produtoras e/ou promotoras de conteúdo consistentemente favorável ao primeiro investigado, inclusive por meio de notícias falsas ou gravemente descontextualizadas, que, ao ser distribuído em outras redes sociais, de forma massiva, contribuíram para o desvirtuamento do debate político em prejuízo do candidato da coligação autora, conforme demonstram picos de busca do Google; d) reiteradamente utilizam as decisões do TSE determinando a derrubada de conteúdos como combustível para estimular a desconfiança em relação ao sistema de votação; e) recebem recursos financeiros de assinaturas dos canais, de publicidade paga e de investimentos oriundos de pessoas que compartilham a ideologia dos seus proprietários, retroalimentando a estrutura empregada na produção e consumo de conteúdos inverídicos; f) aplicam vultosos recursos em impulsionamento nas redes, potencializando o alcance e a distribuição de notícias e documentários que essencialmente reverberam o discurso eleitoral do candidato que apoiam, influindo diretamente no pleito, em razão do momento eleitoral.

  4. Diante desses elementos é pertinente determinar, até que se realize o segundo turno, a desmonetização dos citados canais, bem como a vedação do impulsionamento de conteúdos político-eleitorais, especialmente envolvendo os candidatos disputantes, seus partidos e apoiadores.

  5. Também até o segundo turno, deve-se suspender a exibição do documentário sobre o ataque sofrido pelo primeiro representado em 2018, cuja estreia se encontrava marcada para seis dias antes da eleição. A semana de adiamento não caracteriza censura. Apenas evita que tema reiteradamente explorado pelo candidato em sua campanha receba exponencial alcance, sob a roupagem de documentário que foi objeto de estratégia publicitária custeada com substanciais recursos de pessoa jurídica.

  6. Tutela inibitória antecipada parcialmente deferida, para determinar que, até 31/10/2022, seja suspensa a monetização dos quatro canais mantidos por pessoas jurídicas referidos na inicial e o impulsionamento de conteúdos político-eleitorais por essas empresas, bem como a exibição do documentário indicado, sob pena de multa.

Esta decisão terminou por ser confirmada por 5 votos a 3, sendo que tanto o Ministro Alexandre de Moraes, quanto a Ministra Cármen Lúcia, ao acompanharem o Ministro Benedito Gonçalves, deixaram destacado o caráter “excepcionalíssimo” da medida, tendo em vista as lacunas na Lei Eleitoral.

Estes espaços para controvérsias não são desejáveis, na medida em que os conteúdos veiculados nos canais do YouTube como o da Jovem Pan, Brasil Paralelo, Terra Brasil Notícias e outros semelhantes desequilibraram o jogo eleitoral nas últimas eleições.

A lacuna aqui apontada abre a oportunidade para questionamentos pelos canais e perfis de direita sobre se haveria de fato violação ao que estabelece a Lei Eleitoral e arguirem a seu favor de forma abusiva, como tem sido frequente, riscos de ameaças para a liberdade de expressão e para o direito à comunicação.

Outro aspecto fundamental que deveria ter sido contemplado pela recente minirreforma eleitoral, é a proibição de aplicação dos sistemas algorítmicos de recomendação adotados pelas plataformas independente de impulsionamento pago, quando se tratar de conteúdos de natureza política durante as campanhas eleitorais.

Pesquisas, como a do NetLab, da UFRJ, têm revelado a ampliação do alcance de conteúdos ilegais que promovem desinformação com foco no aumento de engajamento e, consequentemente, no aumento de lucros pela monetização e pela coleta maior de dados. O estudo, realizado em agosto de 2022, demonstrou que o YouTube favoreceu os conteúdos da Jovem Pan por meio de seus sistemas de recomendação, canal identificado com o candidato Jair Bolsonaro, sem que também esta prática comercial seja considerada ilegal pela Lei Eleitoral.

O baixo empenho da Secretaria de Comunicações para emplacar revisões relevantes na Lei Eleitoral

Apesar do enorme desafio para se eleger e reagir à tentativa de golpe, que contou com forte mobilização de parte significativa dos eleitores muito em função do uso das redes, como demonstrou o resultado das eleições de 2018, o Governo Lula dedicou atenção insuficiente aos debates a respeito da minirreforma eleitoral, que seria oportunidade imperdível com vistas a impedir que as próximas eleições municipais em 2024, muito mais desafiadoras, sejam contaminadas pelo uso abusivo das redes e pela ausência de ferramentas legais para regular de forma eficiente a propaganda eleitoral na Internet, reduzindo o campo para desinformação e discursos de ódio, pois estamos falando de mais de 5.600 municípios em todo país.

É importante ter presente que as últimas eleições ocorreram tendo como Presidente do TSE o Ministro Alexandre de Moraes, que teve atuação determinante para frear os arroubos das forças de direita contra o processo eleitoral, impedindo a ocorrência de graves ilícitos. Porém, as próximas eleições municipais são muitos mais complexas, pois envolvem milhares de prefeituras e poderes legislativos locais e terão a Ministra Cármen Lúcia como Presidente da Corte; ela já declarou publicamente: “O voto tem de ser livre. Se não for livre, não vale. Esse é um desafio da Justiça Eleitoral”.

Infelizmente o governo Lula se empenhou pouco para garantir a minirreforma, restando agora o trabalho conjunto com o TSE para o enfrentamento do enorme desafio que as próximas eleições vão significar. Ou seja, restará ao TSE e aos Tribunais Regionais Eleitorais a árdua tarefa de tourear as forças de direita e o poder das plataformas dominantes estadunidenses, sendo que, como afirma Letícia Cesarino, em seu livro O mundo do avesso - Verdade e política na era digital: “a atual infraestrutura das novas mídias possui um viés político, e que esse viés é favorável à direita iliberal, aos conspiracionismos e às demais forças antiestruturais que ressoam em seu entorno” e têm comprometido a eficácia de nossas instituições democráticas.

(*) Flávia Lefèvre Guimarães é advogada especializada em direito do consumidor, telecomunicações e direitos digitais e mestre em processo civil pela PUC-SP. É integrante da Coalizão Direitos na Rede, membro do Conselho Consultivo do Instituto NUPEF - Núcleo de Pesquisas, Estudos e Formação, foi representante das entidades de defesa do consumidor no Conselho Consultivo da ANATEL de fevereiro de 2006 a fevereiro de 2009 e representante do 3º Setor no Comitê Gestor da Internet no Brasil de maio de 2014 a maio de 2020.