Desde o ano passado autoridades brasileiras, especialmente TSE, Polícia Federal e ABIN, têm estado envolvidas com o tema das chamadas fake news.
As empresas de fact checking e a grande mídia
Ao mesmo tempo começam a surgir as empresas jornalísticas de checagem de notícia, que se arrogam o poder de dizer o que é verdadeiro e o que é falso, como é o caso da Agência Lupa e da Aos Fatos, que classificam as notícias e batem os seus carimbos com a sentença. Esse movimento claramente faz parte da reação das empresas da mídia tradicional dominantes ao grande poder que os usuários da Internet ganharam de ampliar a penetração e abrangência de suas contra-narrativas aos discursos conservadores predominantes nos meios de comunicação. Se antes para conseguir dar a mesma publicidade a um desmentido no Jornal Nacional, por exemplo, dependíamos de um direito de resposta acatado seja pela responsável seja pelo Poder Judiciário, hoje temos a Internet para dar vasão a discursos que contrariam o poder da grande mídia brasileira dominada por uma oligarquia política, como vem denunciado há anos o Intervozes com a campanha Fora Coroneis da Mídia.
O acerto entre Facebook e Google e as empresas de fact checking
O grave disso tudo é que as maiores plataformas de comunicação e informação hoje – Facebook e Google, se associaram a estas empresas para retirar conteúdos ou reduzir sua exibição em resultados de buscas classificados como “notícias falsas”, “notícias de baixa qualidade” ou que revelem “teorias da conspiração”, o que tem representando risco à liberdade de expressão e aos direito de exercício das liberdades políticas e de livre fluxo da informação. Já tratei deste assunto aqui no blog em outras oportunidades: Facebook e Google e suas práticas para as eleições de 2018; Capitalismo de vigilância e o esgarçamento da democracia e Eleições 2018 - Internet e as ameaças à liberdade de expressão, mas esse caso é um prato cheio para revelar todas as ameaças que a perseguição ao que se escolheu chamar de fake news pode causar.
O ativista, o Papa e Lula
Justamente por ser um tema que entendo de grande relevância pelas consequências muito incisivas que podem ter sobre o direito de liberdade de expressão e livre informação, com potencial de interferência negativa na formação de opinião política, não quero deixar de tratar desse caso emblemático ocorrido na semana passada envolvendo o consultor do Pontifício Conselho de Justiça e Paz do Vaticano e Coordenador do Encontro Mundial dos Movimentos Sociais em Diálogo com o Papa Francisco, Juan Grabois, que veio ao Brasil e tentou visitar Lula para entregar um terço abençoado pelo Papa. Tendo sido impedido pela Polícia Federal de visitar Lula, Juan Grabois deu uma entrevista publicada no Youtube quando disse que pretendia entregar um terço a Lula abençoado pelo Papa.
O carimbo e a rendição da agência Lupa
A notícia ganhou destaque na mídia e nas redes sociais, levando a Agência Lupa de checagem de notícias a carimbar a notícia como falsa; mas foi obrigada a retroceder, tendo publicado a seguinte nota: “Papa enviou terço a Lula”. Desde a manhã da última terça-feira (12), recebemos, via Facebook, diversos pedidos para checar a frase anterior. Usuários da plataforma nos pediram que trabalhássemos para saber se o Papa Francisco teria realmente enviado um rosário ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso na carceragem da Polícia Federal em Curitiba (PR) desde abril. Segundo postagens feitas por mais de vinte sites, o argentino Juan Grabois, identificado como consultor do Pontífice, tinha sido impedido de ingressar na Polícia Federal para encontrar o político e lhe entregar o terço. O assunto ganhava tração nas redes sociais. Durante a tarde do dia 12, o site Vatican News, agência de notícias mantida pela Secretaria de Comunicação da Santa Sé, publicou uma nota negando que o objeto religioso levado por Grabois tinha sido efetivamente enviado pelo Papa a Lula. Segundo o texto, a visita do argentino tinha caráter exclusivamente pessoal, e o objeto havia sido apenas abençoado pelo Pontífice. O mesmo conteúdo foi distribuído pelas redes sociais da agência. Como se tratava de uma fonte oficial do Vaticano, a Lupa e diversos outros checadores do Brasil consideraram que a informação de que o terço teria sido enviado pelo Papa era falsa. Essa nota, no entanto, foi apagada pela Vatican News – tanto em seu site quanto nas redes – algumas horas mais tarde. Em novo texto, publicado na noite da terça-feira (12), a agência dizia que erros de tradução e transcrição haviam sido identificados na nota anterior e que, ao ser barrado em Curitiba, Grabois queria levar a Lula um terço abençoado, bem como as palavras do Papa. Não afirmava textualmente, no entanto, que esse rosário tinha sido enviado diretamente a Lula por Francisco. Na tarde desta quarta-feira (13), Grabois publicou uma carta em suas redes sociais contando como foi o encontro dele com o Papa. Disse que o evento ocorreu em maio e que, a seu pedido, o Pontífice abençoara o rosário que seria levado ao ex-presidente. Desde o dia 12, a Lupa procura contato com a Vatican News e o Vaticano. Espera um posicionamento oficial sobre o ‘envio’ do terço do Papa a Lula – e não apenas a bênção dele. Diante dessa espera, às 16h30 de hoje (13), optamos por alterar a etiqueta inicial aplicada, “falso”, para “de olho”. Trata-se da classificação usada para monitoramentos. Assim sendo, esta passa a ser a classificação daLupa até que o Vaticano faça um esclarecimento oficial e definitivo sobre o desejo do Pontífice em dar um terço ao ex-presidente. Por conta dessa alteração, suspendemos também todas as classificações que haviam sido feitas pela Lupa, relativas a esse assunto, no projeto de verificação de notícias do Facebook. Também repassamos à plataforma todas as dúvidas e questionamentos técnicos que recebemos nas últimas horas. É importante frisar que, desde a publicação da checagem original, a equipe da Lupa sempre esteve à disposição de todos os afetados para publicar eventuais esclarecimentos e atualizar no Facebook as classificações dadas às URLs citadas. Há relatos de que, com base na checagem feita pela Lupa, jornalistas foram atacados nas redes sociais. Repudiamos qualquer tipo de ação neste sentido. O diálogo tem transcorrido de forma tranquila e profissional com todos eles – e assim será mantido.
A homilia do Para Francisco e a manipulação da mídia
Hoje, dia 18 de junho de 2018 – uma semana depois do ocorrido, coincidentemente ou não, o Papa Francisco, ao fazer sua reflexão do dia (homilia), tratou sobre a manipulação das comunicações pelas ditaduras.
Tudo isso nos indica o extremo cuidado que devemos ter e a resistência intensa que devemos adotar contra iniciativas que buscam se apropriar do poder de dizer o que seja verdade ou não, o que é praticamente impossível, como revela de forma clara esse caso.
Transparência, boa fé e a carta de Grabois
É preciso saber mais sobre essas agências de notícias. E o site Brasil 247 a respeito dessa história toda enviou perguntas a Lupa bastante pertinentes, mas parece que até agora não foram respondidas.
- A Agência Lupa mantém contratos de parceria com veículos de comunicação, como a Globonews? Se sim, faz checagem dos conteúdos? Pode nos informar quais são todos os meios de comunicação que patrocinam ou já patrocinaram a Lupa? Vocês fazem checagem dos veículos de comunicação que patrocinam a Lupa? É compatível checar conteúdos de um veículo com os quais a agência mantém contrato (e do qual, portanto, recebe dinheiro)?
- A agência considera a revista Piauí um veículo de comunicação? Se sim, faz checagem das reportagens publicadas na Piauí?
- É compatível eticamente checar as noticias da revista que i) hospeda o site de vocês e ii) pertence à mesma editora que é proprietária/investidora da Lupa?
- A Editora Alvinegra pertence à família Moreira Salles, historicamente ligada ao setor financeiro. Atualmente, a família é uma das maiores acionistas do Banco Itaú Unibanco e alguns de seus membros são inclusive atuantes na instituição, como seus conselheiros, sendo um deles nada menos que presidente do Conselho de Administração do Itaú Unibanco. Há aqui um segundo conflito ético evidente: como é que vocês podem ser independentes na checagem de notícias sobre o setor financeiro sendo financiados por este setor?
- Qual foi o valor investido até agora por João Moreira Salles em seu projeto? Houve outros investidores privados?
- Qual é a sua equipe e o currículo dos profissionais que fazem a checagem das informações publicadas? As informações sobre a equipe no site são sucintas e não há garantia de estarem atualizadas. Você pode nos fornecer as informações detalhadas e atualizadas?
- Ainda sobre o assunto da sustentação da agência: o Brasil 247 tem uma visão reconhecidamente crítica em relação ao papel do setor financeiro no país, tendo realizado reportagens críticas em relação ao banco Itaú Unibanco. Você não vê incompatibilidade ética em checar notícias de um portal que é crítico em relação à instituição da família de seus investidores?
- O endereço eletrônico da Agência Lupa é http://piaui.folha.uol.com.br/lupa . Portanto, a sede eletrônica da agência é nas instalações do UOL, do Grupo Folha. Vocês fazem checagem nas reportagens do UOL? Vocês fazem checagem nas reportagens da Folha de S. Paulo? Vocês consideram eticamente aceitável avaliar os veículos em cujo endereço eletrônico a agência está sediada?
- Os leitores da Agência Lupa cobram, no Facebook, que vocês se retratem em relação ao erro cometido na cobertura do caso Juan Grabois/Lula. Vocês estão preparando uma retratação?
- Os algoritmos do Facebook têm o poder de determinar o alcance de várias publicações. Ao mesmo tempo, a Constituição Brasileira garante a liberdade de expressão e veda qualquer tipo de censura prévia. Como vocês pretendem conciliar o poder de polícia da informação que exercem com as garantias fundamentais da Constituição brasileira?
- No episódio de Juan Grabois, vocês penalizaram alguns sites da mídia independente, sem que tivessem ouvido o outro lado, princípio basilar do jornalismo. Você considera este procedimento eticamente aceitável?
Esperamos que a Lupa responda às perguntas, pois não é razoável que uma empresa que se diz xerife da verdade, vire as costas para a transparência, ocultando informações relevantes e necessárias para respaldar de credibilidade sua atuação.
Por outro lado, enquanto a Lupa informa sobre o desmentido do Vatican News e revê sua posição, a agência Aos Fatos mantem na sua homepage até hoje dia 18 de junho a seguinte notícia:
“Papa Francisco não enviou terço a Lula; Vaticano desmente boato”.
Ou seja, a empresa que se diz caçadora de fake news está produzindo desinformação, na medida em que o Vatican News não é propriamente o Vaticano e mais, pela carta publicada pelo consultor Juan Grabois, o terço abençoado foi, sim, enviado pelo Papa a Lula. Veja o que diz a carta:
"Em meados de maio estive no Vaticano para visitar o Francisco, que me honra com uma amizade que não mereço, ama a pátria grande e – como ele mesmo indicou – está preocupado com a situação actual. (...) Aproveitei, então, aquela visita ao Vaticano para conversar com o papa sobre a situação e pedir-lhe um rosário abençoado para te levar a ti. Assim foi. É incrível que um gesto tão simples de solidariedade e proximidade do papa, um objeto que serve para rezar, gere tantos problemas, mas não é a primeira vez e Vatican News é responsável por ter permitido que se publique essa nota tão inapropriada e falta de profissionalismo. O seu responsável pediu-me perdão e perdoo-lhe, porque todos podemos cometer erros. Mas também sei que houve danos graves".
Ou seja, a notícia carimbada como falsa na verdade só reproduziu o discurso de Juan Grabois que, até agora, não foi desmentido. Mas uma certeza nós podemos ter: a notícia é verdadeira, na medida em que reproduziu e deu destaque à fala incontestada do ativista.
Sendo assim, frente a tantos desacertos entre os diversos discursos envolvendo o caso, a conclusão a que podemos chegar é que a atuação dessas empresas de checagem é questionável e pode estar enviesada por interesses políticos e econômicos não declarados e, portanto, não se presta a garantir o que seja ou não verdade.
Caminhos para combater a desinformação e o relatório da Comunidade Europeia
Impedir a manipulação informacional e garantir a liberdade de expressão vai muito além de simplesmente dizer o que é verdade ou mentira, como concluiu relatório da Comunidade Europeia a respeito da dos processos de desinformação on line publicado recentemente. O relatório traz as seguintes diretrizes para que se possa fazer frente aos efeitos da desinformação, que de fato ganha proporções preocupantes com o uso das novas tecnologias na Internet pelo poder de abrangência sem fronteiras:
- aumentar a transparência das notícias on-line, envolvendo um compartilhamento de dados adequado e compatível com a privacidade sobre os sistemas que possibilitam sua circulação on-line;
- promover a alfabetização midiática e informacional para combater a desinformação e ajudar os usuários a navegar no ambiente de mídia digital;
- desenvolver ferramentas para capacitar usuários e jornalistas para combater a desinformação e promover um envolvimento positivo com tecnologias de informação em rápida evolução;
- salvaguardar a diversidade e a sustentabilidade do ecossistema dos meios de comunicação social europeus, e
- promover uma investigação contínua sobre o impacto da desinformação na Europa, a fim de avaliar as medidas tomadas pelos diferentes intervenientes e ajustar constantemente as respostas necessárias.
É neste caminho que temos de seguir para tratar do tema sem ferir direitos fundamentais e prestigiar as liberdades democráticas, como nos ensinou hoje o Papa Francisco, que em sua homilia afirmou: "As ditaduras, todas, começaram assim: adulterando a comunicação; para colocar a comunicação nas mãos de uma pessoa sem escrúpulo, de um governo sem escrúpulo".