18 de agosto de 2022
Você sabe o que são os bens reversíveis? No último dia 15 de julho, o canal do Tecnopolítica no Youtube publicou uma conversa que tive com o Sérgio Amadeu sobre a importância dos bens reversíveis relativos aos contratos de concessão da telefonia fixa - um patrimônio bilionário - para a universalização do acesso a Internet.
Na conversa exploramos diversos aspectos a respeito das implicações jurídicas relativas a este tema, bem como tratamos do atual cenário de conflito entre agentes econômicos e sociedade civil e inadmissível insegurança jurídica quanto a este patrimônio público bilionário, muito em virtude da atuação omissa da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) que, como foi exaustivamente examinado pelo Tribunal de Contas da União, assim como pelo Poder Judiciário, em Ação Civil Pública julgada procedente e transitada em julgado em abril último, deixou de promover ao longo dos mais de vinte a quatro anos de vigência dos contratos de concessão da telefonia fixa, os devidos controle, regulação e fiscalização.
Tentei traduzir esse intrincado cenário em artigo publicado no site MobileTime - As divergências na avaliação dos bens reversíveis - publicado em 16 de agosto, cujo texto reproduzo abaixo, com o objetivo de mobilizar os brasileiros sobre o momento crítico que atravessamos na batalha para garantir que o valor econômico das concessões públicas seja de fato revertido em benefício das políticas públicas de inclusão digital.
Nesse sentido, aproveito para informar que entidades da Coalizão Direitos na Rede, tais como IDEC, Intervozes, NUPEF e Instituto Bem Estar Brasil, já ajuizaram Execução Coletiva para a defesa desse patrimônio e estão contribuindo no processo que tramita no TCU a respeito dos bens reversíveis.
Segue, então, o artigo:
Em julho de 1998 o Sistema Telebrás passou por um processo de cisão parcial e as empresas que prestavam os serviços de telecomunicações nos estados para todo o país passaram a ser controladas por empresas privadas – a Telefônica de Espanha, a Brasil Telecom, a Telemar Norte Leste (Oi) e a MCI (que posteriormente vendeu a Embratel para a mexicana Telmex). Foram então assinados contratos de concessão com o término previsto para dezembro de 2005, podendo ser prorrogados por mais vinte anos, sem possibilidade de prorrogação, como ficou estabelecido pela Lei Geral de Telecomunicações (LGT).
Portanto, estamos às vésperas do encerramento dos contratos de concessão, com a previsão de que o acervo de bens associados à prestação dos serviços – os famosos bens reversíveis – deve voltar para a União Federal, a quem compete a exploração das telecomunicações no Brasil e tem a atribuição de garantir o acesso aos brasileiros.
Ocorre que em outubro de 2019 foi aprovada alteração na LGT facultando às concessionárias a possibilidade de requererem a Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) a adaptação dos contratos de concessão, regidos pelo regime público, para autorizações de múltiplos serviços, regidos pelo regime privado, com o repasse definitivo dos bens reversíveis – imóveis, equipamentos, contratos, redes de acesso e de transporte, assim como os dutos por onde passam todas essas redes.
Esses bens hoje estão sujeitos aos regramentos do regime público e, por conseguinte, ao controle pela ANATEL quanto às obrigações das concessionárias de compartilhamento da capacidade de tráfego e quanto aos valores cobrados pela exploração industrial dessas linhas contratada com outras empresas, não detentoras de rede, que prestam serviços de telecomunicações e de conexão à Internet para os consumidores finais.
No caso de as adaptações das concessões para autorizações de fato ocorrerem antes de dezembro de 2025, está prevista a avaliação econômica das concessões, a fim de que os valores apurados, que incluem os bens reversíveis, sejam revertidos em novos compromissos de investimento, priorizando a implantação de infraestrutura de rede de alta capacidade de comunicação de dados em áreas sem competição adequada e a redução das desigualdades.
É claro, então, que a metodologia para avaliação econômica das concessões é fundamental para a inclusão digital, na medida em que quanto maior o valor apurado, maiores serão os investimentos para que possamos reduzir o enorme fosso digital que se impõem aos brasileiros de baixa renda e que não são poucos. De acordo com as pesquisas do CETIC.br, estamos falando de mais de 100 milhões de cidadãos que ou não têm acesso nenhum a Internet ou estão sujeitos a planos com franquia de dados bastante reduzida – a média é de 3 GBs de volume de dados por mês – e, quando se esgotam os dados, o acesso a Internet é bloqueado e o consumidor só acessa determinadas aplicações; na grande maioria dos casos, Facebook e WhatsApp.
Ocorre que há situação de conflito aberto em torno do processo de avaliação econômica das concessões. Isto porque o processo conduzido pela consultoria contratada pela ANATEL para realizar o levantamento com base em metodologia estabelecida pela Agência concluiu, no último mês de julho, que o valor total é de R$ 22,6 bilhões.
Por outro lado, o Tribunal de Contas da União (TCU) em processos que têm para apurar as omissões e irregularidades perpetradas pela ANATEL ao longo da vigência das concessões, no que diz respeito ao controle dos bens reversíveis e ao acompanhamento do equilíbrio econômico financeiro dos contratos públicos, já apontou que as próprias teles, em 2011, afirmaram que existiam mais de 8 milhões em bens reversíveis avaliados em R$ 108,3 bilhões.
Para que se possa ter uma ideia do valor só dos bens reversíveis, importante ter em pauta que na data da privatização eram mais de 650 imóveis e milhares de quilômetros em obras de engenharia civil para implantação das redes que passam por todo o país e que, de lá para cá, só se expandiram. Sendo assim, como justificar que tenha havido depreciação a ponto de transformar mais de R$ 100 bilhões em menos de R$ 22 bilhões?
E pior: as teles abriram na ANATEL procedimentos para a apuração de perdas que alegam ter sofrido e que lhes confeririam o direito de serem indenizadas em mais de R$ 36 bilhões.
Estamos mergulhados, então, num quadro de insegurança jurídica e conflito, inadmissíveis por se tratar de contratos públicos estratégicos para o desenvolvimento econômico, social e cultural do país, com potencial de prejuízo vultoso para os cofres públicos e largamente injusto para a sociedade como um todo, que deixará de ver revertidos para a inclusão digital os recursos públicos associados às concessões.
Foi este cenário que levou o Poder Judiciário a julgar procedente ação civil pública ajuizada ainda em 2010, reconhecendo o descontrole absoluto e condenando a União Federal e a ANATEL a apresentarem os inventários dos bens reversíveis associados às concessões privatizadas em julho de 1998, de modo que possamos identificar o marco zero do patrimônio em questão e podermos avaliar com segurança e precisão o real valor econômico das concessões.
O impasse está posto, especialmente porque a própria ANATEL levou ao processo da ação civil pública as seguintes considerações do acórdão do TCU 3311/2015: “Ao contrario, a Anatel afirmou categoricamente em diversos documentos que não possui qualquer informação sobre a lista de bens reversíveis existentes em 1998, … convém salientar que no período 1998 a 2001 – justamente os primeiros anos após o leilão de desestatização das empresas federais de telecomunicações – a Anatel não procedeu a nenhuma atividade de acompanhamento e controle dos bens reversíveis”.
Diante da resistência da ANATEL e da União em cumprirem a decisão judicial, bem como das providências que lhes foram atribuídas pelo TCU, resta-nos duas medidas: apelar ao Judiciário e ao próprio TCU e apurar as responsabilidades dos agentes públicos pelo vultoso prejuízo que pretendem impor ao Brasil e às políticas públicas voltadas para a democratização do acesso às telecomunicações e a Internet.