Estamos perdidos? A CPMI das Fake News e o poder das empresas estadunidenses que têm dominado a Internet

Estamos perdidos? A CPMI das Fake News e o poder das empresas estadunidenses que têm dominado a Internet

Charge - Laerte

1º de março de 2020

Hoje acordei e fui às redes sociais; fiquei assustada com a quantidade de posts em favor de Bolsonaro, pois, nas bolhas em que as empresas de serviços da Internet dominantes me colocam, tenho sido poupada do baixo nível e ignorância dos bolsominions tendo pouco contato com a milícia virtual dos governistas. Fiquei pensando em como os exércitos virtuais devem estar ativos para furar os algoritmos das plataformas.

Mas o fato de viver confinada dentro da minha bolha, onde estão incluídos progressistas de esquerda com quem compartilho o sentimento de que o Brasil mergulhou no caos institucional, social e econômico, não me faz deixar de ter presente que, desde 2014 as forças de direita que incentivam o ódio e o desrespeito aos direitos fundamentais, têm se aproveitado com grande competência de dois fatores que têm influenciado de forma determinante o campo da comunicação em nosso país, quais sejam:

  • O poder de monopólio dos três maiores grupos econômicos que dominam as redes – Facebook, que é dono do Instragram, Messenger e WhatsApp, Google, que administra o Youtube e Twitter;
  • A associação entre as empresas dominantes no mercado de conexão a Internet por dispositivos móveis e o Facebook e WhatsApp, com o tráfego sem cobrança dos dados dessas duas aplicações.

Trata-se da prática comercial de planos de acesso a Internet com um limite mensal de dados – as franquias, das quais não são descontados os dados relativos ao uso de Facebook e WhatsApp e que, ao final da franquia, o consumidor só pode acessar essas duas aplicações, em violação frontal a direitos que conquistamos com o Marco Civil da Internet, atribuindo ao serviço de conexão a Internet o caráter essencial e universal. Esses planos são contratados com nada mais nada menos que 80% dos usuários das classes D e E e 63%, da classe C.; ou seja, estamos falando de pelo menos 90 milhões de brasileiros.

Desde 2018, venho denunciando aqui no blog a gravidade dos efeitos desses dois fatores para o esgarçamento de nossa democracia.

Entretanto, os rumos que os debates sobre esses temas tomaram, inclusive no campo da esquerda, nem de longe nos capacita para fazer frente minimamente relevante ao poder comunicacional das milícias virtuais bolsonaristas que se aproveitam desses fatores e, consequentemente aos danos avassaladores que essa realidade tem causado ao Brasil.

Eleições de 2018

Tanto é assim que as forças bolsonaristas, com o apoio do know-how de Steve Banon (link post blog) se aproveitaram dessa realidade e usaram nossos dados pessoais e o poder de penetração do Facebook/WhatsApp para deflagrar uma intensa campanha de desinformação que, se não foi determinante (e eu acho que foi), teve um peso importante nos resultados das eleições.

Como também venho dizendo há alguns anos, a mini-reforma eleitoral de 2017, que proibiu a propaganda paga na Internet, mas criou exceções – liberou o impulsionamento pelas redes sociais como Facebook, WhatsApp, Google/Youtube e Twitter, também é grandemente responsável pelo estrago que os processos comunicacionais que se dão pelas principais redes sociais na Internet têm causado para a formação de opinião política e para o exercício do livre direito à informação e formação de opinião política.

A CPMI da Fake News

Porém, as discussões que têm acontecido na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito instaurada em 2019 para apurar irregularidades praticadas com o uso de aplicações de Internet têm dado pouco relevo para as disposições inseridas na Lei 9.504/1997.

Aliás, não é a primeira vez que as instituições ignoram assustadoramente e se curvam ao poder das plataformas. Em 2017 o Ministério Público representou contra a associação entre Facebook/WhatApp com as empresas dominantes de conexão a Internet ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), mas ao final do processo, pasmem, a conclusão foi no sentido de que essa prática comercial seria benéfica para o consumidor. Será que os agentes do CADE que participaram daquele processo sentem algum tipo de constrangimento hoje, depois dos danos difusos e profundos que esta prática comercial tem trazido?

Pergunto também: será que os parlamentares que privilegiaram essas empresas americanas que já dominavam o mercado brasileiro de aplicações na Internet com as alterações na lei eleitoral estão cientes do mal que fizeram aos processos eleitorais e aos direitos políticos dos cidadãos brasileiros?

A invasão de privacidade e expropriação e exploração ilegal dos dados pessoais

É importante destacar que não é à toa que o Facebook patrocina o tráfego dos dados relativos ao uso de suas aplicações junto às operadoras de acesso a Internet. O objetivo é manter cada vez mais consumidores, e cada vez por mais tempo, conectados em sua rede social, na medida em que é por esses canais que coletam nossos dados pessoais de forma avassaladora e se comercializam com empresas que vendem produtos e serviços, assim como empresas de marketing político, como aconteceu com a Cambridge Analytica.

Foi esta empresa que atuou e influenciou de forma arbitrária, antiética e escandalosa as eleições dos EUA e o processo de votação do Brexit no Reino Unido, de forma associada ao Facebook, como ficou demonstrado com o filme Privacidade Hackeada.

Soluções

Enfim, se a CPMI de fato pretende chegar a algum resultado relevante para minimizar os efeitos dos exércitos virtuais que destroem nossas instituições que deveriam sustentar os sistemas eleitorais e nossa democracia, precisa ir além de apurar os ilícitos cometidos por políticos, partidos e seus apoiadores.

  1. É necessário enfrentar a realidade que se impõe não só ao Brasil: o poder de monopólio das empresas de aplicações da Internet, revendo os dispositivos legais que lhes conferiu injustificável privilégio instituído com a mini-reforma eleitoral de 2017.
  2. E, mais, atuar no sentido de expurgar as práticas comerciais abusivas e ilegais exploradas pelas empresas de conexão a Internet em associação com o Facebook/WhatsApp, que tanto tem contribuído para o estabelecimento de um fosso digital entre os consumidores de alta e baixa renda, criando uma Internet para os ricos, que podem pagar por um consumo ilimitado e outra, para os pobres, que não têm como checar as informações que recebem pelo Facebook/WhatsApp.
  3. Ainda com relação ao Facebook/WhatsApp, é importante ter presente que as empresas de marketing político, com base em dados pessoais muitas vezes coletados no próprio Facebook, criam grupos no WhatsApp com base em perfis psicológicos, incluindo usuários sem que seja necessário o seu consentimento para tanto. É imprescindível que se imponha a necessidade de prévio consentimento para que alguém seja incluído em grupos.
  4. Outro fator que não pode ser ignorado é o poder das plataformas de gerenciarem os conteúdos postados pelos usuários, cujos resultados têm sido violações a liberdade de expressão e censura, como tem feito o Youtube, quando retira vídeos de acordo com seus interesses comerciais ou recomenda e induz o acesso a outros vídeos com base em quantidade de likes muitas vezes resultado do uso sem nenhum controle de fábrica de robôs, fazendo uso de algoritmos, comprometendo o direito de escolha e modulando opiniões.
  5. E, ainda, que em hipótese nenhuma sequer cogitem de adiar a entrada em vigor prevista para agosto deste ano da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais recentemente aprovada e, mais, que pressionem o Poder Executivo para criar a Autoridade Nacional de Proteção de Dados.
  6. Por fim, nenhuma solução que cogite alterar o Marco Civil da Internet, no sentido de ampliar mecanismos de vigilância e redução dos direitos de proteção de dados pessoais vai evitar ou reduzir os danos que temos vivenciado; muito pelo contrário, o caminho de relativizar a proteção à privacidade é uma armadilha perigosa que vai se voltar contra nós, especialmente nesta conjuntura de riscos reais aos direitos fundamentais.

Sem que estes aspectos sejam enfrentados, estaremos perdidos para o enorme poder econômico das empresas americanas que dominaram o espaço público da Internet e para empresas, partidos e políticos sem ética e sem compromisso com a democracia e os direitos sociais, culturais e econômicos no Brasil.